Travessia e Resiliência na Poética de Raduan Nassar
Resumen
O autor paulista Raduan Nassar foi para nós uma excelente ocasião para refletir sobre uma poética da leitura, tomando principalmente como alvo sua obra Menina a caminho. Esse artigo pretende esboçar, dentro dessa poética, uma análise das tensões psicossexuais e políticas em que se envolveu direta e indiretamente a jovem heroína. A partir do pressuposto de que todo texto literário comporta uma provocação a descobrir a dinâmica ética-política que o movimenta, achamos que a noção de resiliência poderia apoiar a nossa resposta a tal provocação. A protagonista está na fase pré-adolescente, o texto, uma narrativa de menos de 100 páginas, na qual a menina empreende um percurso de aprendiz. Logo, emitimos a hipótese de um romance de formação ou de educação. No entanto, dado que a originalidade de qualquer personagem ou fato literário se infere da comparação com outros personagens e fatos similares, virão testemunhar obras, autores e críticos estrangeiros.
Abstract
The author from São Paulo, Raduan Nassar, was an excellent opportunity for us to reflect on a poetics of reading, mainly targeting his book Menina a caminho. This article intends to sketch, within this poetics, an analysis of the psychosocial and political tensions in which the young heroine was directly and indirectly involved. From the assumption that every literary text involves a provocation to discover the ethical-political dynamics that move it, we think that the notion of resilience could support our response to such provocation. The protagonist is in the pre-adolescent phase, the text, a narrative of less than 100 pages, in which the girl undertakes an apprenticeship. Therefore, we cast the hypothesis of a novel of formation or education. However, since the originality of any character or literary fact is inferred from comparison with other characters and similar facts, they will come to witness works, authors and foreign critics.
Keywords:
Poetics, Raduan Nassar, Romance Training, Identity, ResiliencePoética, Raduan Nassar, Romance de formação, Identidade, Resiliência
Ⅰ. Autor - Personagem - Leitor - em travessias
Uma vez anunciado um esboço de poética como envelope do “romance de formação”, assim como de uma experiência sexual/ política alicerçada num processo de resiliência bem ou mal sucedida, convocamos a tríade da realidade literária autor-texto-leitor. Pois cada um dos três vai ter de atuar na empresa a seguir. No entanto, a tradição vai nos autorizar a modificar a tríade dos manuais de Teoria da Literatura, a fim de propor aquela tríade que mais convém a perspectiva escolhida: no lugar do texto, escolhemos a personagem que, porém, é a modalidade textual sobre a qual vamos principalmente nos debruçar. A personagem tem a vantagem de trazer à luz de saída o pathos, que circula na obra em pauta. Com efeito, a dor do mundo atravessa o destino deste e dos outros protagonistas de Nassar. Cada narrativa se encerra por um cenário dramático. A poética de leitor que empreendemos já está em alerta. Mais ainda, quando olharmos para o começo das narrativas, se percebe uma estrutura comum em flashback em Menina a caminho, Lavoura arcaica, Um copo de cólera, como se a estrutura adotada tivesse a função de nos pôr face a melancolia de uma vida mal vivida. O que logo alerta o leitor sobre a necessidade de entrar em uma tarefa interpretativa muito especial. Algumas pessoas imputam ao hermetismo do autor: é uma tarefa detetivesca, bem freudiana. De fato, somente ela conseguirá trazer à tona histórias invisíveis que ressoam no visível dos textos de superfície, acionando, por exemplo, a dinâmica da resiliência. Antes de uma retomada no parágrafo a seguir, a resiliência diz respeito aos rituais de superação de problemas do cotidiano, cuja origem secreta pode ser um trauma encalhado no inconsciente. No caso de Menina a caminho, o trauma pode não ser apenas metafórico, pois o transtorno da menina remete à problemas correlatos classicamente à identidade sexual, talvez à identidade sociopolítica. É provável que as traduções pulsionais do seu mau estar de pré-adolescente se devem às suas febris procuras, a escolhas a esmo, ou a comportamentos reativos que nos surpreendem como leitores. Do ponto de vista do autor, não há nada que possa testemunhar a sua biografia. Aliás, é desaconselhado seguir essa pista. Os autores nos mentem e mentem a si mesmos. Além do mais, duvidamos desde Rimbaud e Marcel Proust que haja coincidência entre o eu-autor e o eu-cidadão. Resta-nos o personagem-texto em sua enigmaticidade de esfinge. Acontece que com ou sem a psicanálise, o que nos diz ou faz esse eu fictício é apenas um ponto de partida para a reflexão e não um ponto de chegada. O personagem de ficção ocupa esse lugar vazio, que na Grécia antiga cada qual poderia ocupar ao seu turno, para falar democraticamente em nome da multidão e nunca em nome próprio. Esse espaço impessoal é o lugar do imaginário criador. Um lugar de distanciamento, mas que encontra a cumplicidade de muitos que aí se autodefinem, provisoriamente, até chegar novas conjunturas que obrigam a se redefinir novamente. Suspeitamos então, a que ponto o ato criativo do autor o ultrapassa e põe à prova a nossa sagacidade interpretativa. O autor põe, portanto, o leitor na situação do detetive que trabalha por conta dos outros, andando no encalço do sujeito personagem em todos os ambientes por onde este passa. O intérprete precisa questionar os pontos de parada, as preferências e rejeições do ator narrativo, seus momentos de êxtase ou de angústia, seus menos perceptíveis gestos, seus mais imperceptíveis batimentos de olhos e, quando ele fala sua mais lacônica expressão, assim como também os seus silêncios. Realmente, os actantes e atores de uma narração nos põem à prova, e quando é menino, como o André de Lavoura arcaica ou é menina, como aquela de Menina a caminho, pode apostar que as suas conversações, suas caminhadas na casa, no campo ou na cidade simbolizam uma busca de identidade, um processo de socialização como aqueles a respeito dos quais, especula o sociólogo Claude Dubar1) (2006).
Portanto, detrás da fábula da identidade, ou das opções mostradas pelas narrações e descrições, está atuando um imaginário, uma simbolização. Junto com esse motor de produção, proliferam imagens em graus diversos de visibilidade que o interprete se esforçará por convocar, com a finalidade de tecer uma outra fábula: a fábula do devir-mulher da menina em Menina a caminho2) (MC), a do devir–afetivo realmente adulto do adolescente André e da adolescente Ana em Lavoura arcaica3) (LA), assim como no casal, supostamente maduro, de Um Copo de cólera4) (UCC). Pois, dentro do contexto de produção de Nassar, a respeito desses sujeitos, e principalmente no que tange aos dois parceiros sexuais de Um copo de cólera, pesa sobre cada qual a sequela de um trauma emocional, hipoteticamente o da ditadura paterna ou da ditadura militar, que é uma figura simbólica do pai biológico muito autoritário. O dito trauma, no sentido próprio ou figurado, cria um curto-circuito até na intimidade entre quatro paredes, no caso de pretendido casal adulto. Sumariamente, enquanto exercício ético, a resiliência residiria na superação das barreiras que rondam por aí. Mas, é preciso ficar atento desde já à multiplicidade de papel que se outorga a figura masculina do pai: uma figura de poder emblematizado no econômico e no político, mas, como acabamos de ver, que não deixa de invadir o domínio sexual e, assim, de multiplicar seus papéis neutralizando a distinção anunciada no começo entre uma fábula sexual ou da identidade e uma fábula política.
Já temos ingressado no início do precedente parágrafo numa Poética da leitura de tipo comparado, como anunciado. Com efeito, fomos arrastados até as atribulações de todos os heróis e heroínas nassarianos, depois de brevíssimas considerações sobre os parâmetros de toda leitura: o trinômio texto-autor-leitor; e à margem destes, projetando a sua devida luz, apareceu o contexto sociopolítico da escrita e da leitura. Antes de qualquer ingerência filosófico-teórico-sociológica-biográfica, estimamos que o texto bem trabalhado, - e os do Nassar o são - fala de forma bastante expressiva para quem sabe ouvir-ver o silêncio das imagens e o ressoar dos mitos. Mais concretamente, os personagens narrativos de Nassar proporcionam à leitura possibilidades de elaborar lances intuitivos e criativos em torno de uma identidade sexual em processamento, em que se infiltra uma identidade política. Nesta perspectiva, a narração tem capacidade em si de indicar, junto a um dono de poder político, um dono de poder econômico ou religioso, sem requerer a intrusão do autor e de sua biografia. No que diz respeito ao poder político, fazemos logo a observação seguinte: raramente ele anda sozinho. Essencialmente narcisista, o poder político (talvez todo poder) adora espelhar-se em outras entidades poderosas. Em outras palavras, para a infelicidade dos súditos, um poder nunca se exerce sem conluio com outros alter ego, ou espécies de sombra especular que é, antes da Revolução francesa, o poder econômico e o poder religioso. Aproxima-se assim da opinião de Michel Foucault sobre a ubiquidade do poder. Reatando com a temática anterior da sexualidade assombrada, de que maneira vai se produzir concretamente a possível resiliência, ou seja, o casamento do sexo com o poder em Nassar? Caberá a nossa análise ulterior tentar responder.
Mas antes de acompanhar em particular os jovens heróis, principalmente a menina de Menina a caminho, em seus percursos, antes de inventariar com ela lugares e encontros, de identificar os seus relacionamentos com seus pais e mães reais e/ou simbólicos, com seus pares adolescentes e pré-adolescentes, antes de explicitar os rituais de encontros com o a alteridade em geral, abarcando os aspectos mítico e sagrado, -é preciso voltar mais um pouco atrás e indagar o sentido do anonimato da menina, a começar pelo nome aqui reduzido ao próprio título da história (“menina”). O que apressadamente qualificamos de “reduzido”, não seria de preferência uma abertura de sentido que ali lhe confere o autor? Não seria para Nassar a maneira de conferir à jovem heroína um protótipo que proporciona a cada leitor aquilo que, depois de René Girard, apreciou a sua maneira Eneida Maria de Souza no seu estudo de psicocrítico intitulado: “Madame Bovary c´est moi? ”. No sentido de René Girard retransmitido por Eneida Maria de Souza relida por nós5), a menina de Nassar ganha a universalidade de um modelo de menina, que podemos melhor apreciar o contexto flaubertiano da exclamação: “Madame Bovary c´est moi! ”. Quando Flaubert publicou o seu famoso romance (Madame Bovary), usando como título o nome da protagonista, a crítica foi desmoralizante em torno daquela heroína adúltera e também do seu autor. Ambos caíram num igual desprezo que justifica a exclamação. Havia lá também a confusão hoje inaceitável entre um autor e seu personagem, que provocou a ironia de Flaubert. Para nós, o grito de Flaubert é também o reconhecimento pela censura da força expressiva e estilística que ele conseguiu conferir a seu empreendimento. Foi um prêmio indiretamente discernido, e que lhe deu uma satisfação correspondente a uma sensação doce-amarga. A sua reação foi em boa parte o orgulhoso sentimento da obra bem feita que animou o escultor italiano Miguel-Ângelo gritando diante da sua estátua de Moisés: Ele se mexe! (Ele vive!). Um segundo sentido, não longe do primeiro, é o de ter criado um personagem universal, com que muitas gerações de leitores vão poder se identificar. Já carrega um esboço da interpretação nossa o personagem-protagonista de Menina a caminho, quando prestamos atenção ao fato de que o nome categorial (menina), que lhe é atribuído no título, vai ser o único nome que ela terá ao longo da narrativa. Esse fato levanta a problemática dos nomes, sobre a qual voltaremos a insistir no desenvolvimento a seguir.
A questão dos nomes em Menina a caminho se inicia (pois voltará várias vezes) da maneira seguinte: é por não ter nome próprio, mas apenas um nome categorial, que a menina de Nassar adquire a extensão de um protótipo, ou seja, a possibilidade de ser identificada com uma multidão de meninas, ou mesmo com todos nós, inclusive o autor, com devidas restrições. Mas também é devido a essa carência de nome individual que, no ato de brincar - como mostra a sua presença na última página do livro e como se supõe na sua entrada inicial no livro, como se observa a estrutura em flashback - ela pula no devaneio para buscar a identidade faltante. Veremos mais adiante o sentido profundo desde traço onírico na tecla comparativa. No entanto, parece que já estamos dentro do enredo de Menina a caminho, enredo este que somos todos convidados a acompanhar como se fosse o significante de uma procura de identidade. Oferece-se a nossa observação o desfraldar dum ritual cujos elementos são: andamento ritmado por fases, normas flexíveis, ritos de interação, tentativas sucessivas, perdas e ganhos, instantes de admiração e de encanto, mas também momentos de indecisão, de medo, de decepção, de vexames, de susto, e mesmo de pânico6). Essa travessia espacial toma a forma de um ritual; enquanto ritual, ela vai comportar elementos probatórios (Goffman, apud JOSEPH 1998, 33-50). Mas não vamos nos aprisionar ainda neste enredo. Vamos retornar à problemática do nome. Pela brecha que ela vai provavelmente propiciar, seguiremos a pista do poder em relação com os outros terrenos que este invade habitualmente.
Assim como vimos, o nome é gerador de papéis. “Seu Américo” é o nome do dono do maior Armazém da cidade de Menina a caminho. Achamos indispensável restituir aqui o sentido grego da palavra cidade que significa também estado. Pois Seu Américo carrega discretamente (via a forma feminina América) o nome de todo um continente. A lógica da narrativa em leitura quer que o personagem seja dono de um poder continental ou, a rigor, hemisférico. Seu nome está na boca do povo: nas conversas de Dona Ismênia com Zuza (MC, 16, 17), não menos de três vezes nas fofocas ou nas críticas políticas da Barbearia (MC, 25, 27, 28), e mais quatro vezes no Bar (MC, 36-44). Naquele Bar da cidade, esse nome foi mencionado duas vezes na ocasião de um discurso do ativista Zé das Palhas por “três rapazolas turbulentos” que invadiram o local (MC, 36, 37). Muito curiosamente surgiu outro nome importante nos debates, o do Getúlio Vargas. Foi naquela exata circunstância que a fábula da identidade anexou a fábula política, uma fábula que comprovadamente é onipresente na obra ulterior de Raduan Nassar. Aqui aparece um indício assaz discreto, mas inegável da presença do autor que, como se sabe, era muito adverso à ditadura representado aqui pela dupla figura combinada de Seu Américo e Getúlio Vargas. Por exemplo: lemos na página 36 (MC 1997): “Zé de-palhas vive fazendo discursos contra o governo. Coitado de seu Zé, ele pensa que o rádio que toca-e-fala serve também para levar de volta a voz da gente”. Quem disse esta frase é um narrador anônimo. Mas de onde ele fala? Quem o inspira? Senão um grupo ideológico e político de provável pertencimento do autor Raduan Nassar? Pelo seu distanciamento crítico e irônico do poder temido por uns e elogiado por outros naquele Bar, ele se vale de um pathos aliado à tonalidade compassiva de um ethos de grande eficácia estilística. É muito provável que a voz do autor esteja habilidosamente por trás da respectiva enunciação enunciada dos atores. E não é gratuitamente que suspeitamos a infiltração da identidade do intelectual resistente Raduan Nassar dentro da inscrição textual do personagem.
Por isso é que a censura política do tempo da publicação de Madame Bovary demonstrou competência interpretativa ao processar o autor Gustave Flaubert. Zé-das-palhas é o conector lógico do nome do poder (político) de Getúlio Vargas com o nome e poder (econômico) de Seu Américo (p.38, 39). Trata-se de uma equação simbólica, articulada no Bar (MC, 34-46), num dos mais extensos trechos de Menina a caminho e, portanto, do mais demorado banho de aprendizagem da menina que, silenciosamente assistia a tudo, escutava tudo, refletindo, meditando, avaliando, “assuntando”-diz o texto na página 45 - tanto no plano da cidadania (MC, 34-42) quanto no plano da identidade sexual (MC, 42-46). À beira da bufonaria está essa passagem do bar na qual se observa o entre jogo de duas faces do poder: Seu Zé teve um sucesso de público até a intrusão dum grito potente: “Getúlio é nosso Pai! ” vindo de repente de um sujeito “grande c´um bruta muque quase arrebentando a manga do macacão ”. Pertencente à “União operária”, diz um informante (MC, 41), o colosso de macacão tratou seu Zé de “espantalho de passarinhos ” a ser “arrancado da prateleira ” (MC, 41), e tornou contra ele os rapazotes, demonstrando assim a força bruta do regime de Getúlio contra os seus oponentes.
Fato digno de nota: a oposição dos poderes a que num relâmpago acabamos de assistir é, na economia narrativa, um incidente sem consequência. Pois rapidamente consagrou, como anunciamos antes, uma estável associação de Seu Américo e Getúlio. Os apelativos Getúlio, Getúlio Vargas, Doutor Getúlio Vargas segundo os contextos (MC, 25; três vezes na página 39; 2 vezes na p. 40; p. 57), se juntam à denominação do Seu Américo em várias páginas do livro. Mais eloquentemente a foto do Ditador decora a porta do escritório de Seu Américo (MC 1994, 57). Quando, num episódio crucial, a jovem protagonista vai bater na porta de Seu Américo, ela se sentiu perdida, como que caída numa enrascada ao reparar o retrato de Getúlio. E, de fato, a coincidência dos dois lobos no mesmo lugar definiu sob qual auspício vai ser cumprido o rito final do seu decisivo ritual sexual : “de relance a menina (...) apanha o retrato emoldurado de Getúlio Vargas, pendurado no fundo sobre a porta ” (MC, 25). Houve um paralelo precursor. Foi quando, à guisa de prelúdio à discussão em que Zé-das-palhas vai envolver as duas figuras de Getúlio e de Seu Américo na Barbearia, surgia o mesmo retrato de Getúlio, descrito nos mesmos termos (MC 1994, 25). Bela cumplicidade dos poderes. Curiosamente, no enredo, ambos são respectivamente uma espécie de Deus oculto: se falam muito deles, mas ninguém os vê, salvo a menina destinada a um encontro ritual com Seu Américo ao término de um labirinto. Alí, veremos um Seu Américo em carne e osso desempenhando o papel duplamente incestuoso de um duplo pai abusivo, assim como procede toda ditadura com o seu povo.
O leitor deve saber que no bar, assim como na conversa entre Dona Ismênia (a partir de sua janela) e seu interlocutor Zuza (que está na rua), o assunto era o filho do Seu Américo. Reaparece novamente esse tema da filiação na mensagem entregue ao poderoso dono do maior Armazém da praça. Desta vez, a fúria desencadeada pela questão duma presumida paternidade nos situa quanto ao ódio de certos detentores do Poder na América para com o povão, que ingenuamente o chamam de pai. Um assunto a rever mais adiante.
Até agora os nomes tem cristalizado função, papel, até uma fábula adventícia cheia de paixão. Não nos surpreende cruzar regularmente em Menina a caminho apelativos carregados de significado latente como Eudóxia (a professora), Tio-Nilo (Tio/a= educador/a em certo sentido +Nilo=rio abastecedor de sonhos da menina, de utilidades técnicas dos peões). Estrutural e miticamente, a pequena oficina de Tio-Nilo ocupa o meio da história. Ela revela-se um oásis em franco contraste com as turbulências assaz chocantes da maioria dos outros lugares da narrativa. É uma parada saudável e acolhedora, uma enseada reconfortante para a menina em processo de identificação, entre diversas etapas de grosserias por parte de Zuza e dos homens do Bar, e os momentos de desprezo que lhe infligirão uma “aluna de uniforme” e a professora Eudóxia.
Em contraste com essas experiências probatórias advirá, após a gostosa pausa perto do Tio Nilo, um outro intermédio de felicidade na primeira parte do grande Armazém; mas mostraremos prelúdio do ápice da dor em seu rito de passagem. Não há dúvida que assistimos no palco montado por Raduan Nassar, em Menina a caminho, a um ritual de identidade que se cumpre narrativamente mediante uma alternância de prazer e dor. Assim é que se constitui o destino humano. Saber superar as fases difíceis, aprender a domar as lembranças negativas para alcançar as metas que se impõem ou que se escolhem, tal é a definição já dada à resiliência. Ela é uma ferramenta explicativa do percurso do sujeito em busca de auto-e de hetero-realização. Depois de ter emprestado o seu nome à ciência física dos materiais, a sua base tornou-se psicanalítica com um complemento sociológico, e mesmo etológico para Boris Cyrulnik (2006, 7-25),
Ⅱ. Poética da Leitura em Raduan Nassar: Percursos interpretativos
Chegou a virada anunciada desde o começo, de uma psicocrítica degenerando em poética comparada a leitura. Ela se inicia pelo gesto de acompanhar passo a passo a protagonista de Menina a caminho, desde a sua entrada em cena até a sua saída.
A menina mal vestida, de rosto mal lavado, suja, vagueando na rua, desprezada, rejeitada da escola, quase invisível no Bar e na Barbearia, aparentemente muda, é o símbolo dos indivíduos sócio-economicamente desclassificados. Protótipo do ser-sem-qualidade, ela era portadora de uma súplica ao Seu Américo, figura do poder econômico narrativamente associada à figura política de Getúlio Vargas. Sem o saber, ela abriu uma caixa de Pandora. O pedido foi brutalmente indeferido. Pois, devido à imagem que o poder ditatorial se faz do povo, pedir é reclamar, reclamar é ir à contramão da respeitosa lei do silêncio. A mesma lei prescreve que o texto do desejo do povo seja “in-édito”, que não seja mais do que um sonho potencializado da imaginação, ou seja, do irreal, melhor, do irrealizável. Mas o sonho talvez seja diferente disso.
O pensador da psicanálise, Jacques Lacan, define o sonho tal como o inconsciente: um texto a que faltam trechos que cabe ao analista ou ao crítico literário restituir e completar. Menina a caminho de Raduan Nassar é um texto-sonho no qual uma pré-adolescente sai de casa, provavelmente movida pelo desejo de saber o que ela é, estando sem nome, sem boa aparência, sem identidade, sem recomendação. Ela tem chegado ao ponto de entrega da mensagem depois de uma jornada marcada por diversos desvios de caminho, uns felizes como na rua onde observava meninos preparando uma festa circense, como na visita do espaço de brinquedos da Oficina de Tio-Nilo, como na primeira parte do grande Armazém; outros de duras provações, como nos espetáculos escandalosos de um tal de Zuza, de um cavalo mijando junto a ela, de um homem fazendo “uma dessas coisas”... na Barbearia, ou dos cachorros namorando na rua, ou de uma aluna, menina pretensiosamente bem vestida, ou de uma velha professora que se acha no direito de desprezá-la... E agora lhe vem essa, a agressão sexual - meu Deus! - de... Seu Américo!
Que vida, que provação é essa? Quem é ela para tanto aguentar?
Aqui é que tivemos de recorrer a uma arte interpretativa para tentar restituir os elos faltantes, reconstituir a trama da significação, repassando pelo percurso da menina, interrogando seus passos com o apoio da hermenêutica psicanalítica e da mitocrítica de Gilbert Durand.
Para começar, registramos que, saindo do pesadelo, a menina voltou a fazer o que em toda probabilidade já fazia antes: brincar. Foi assim que encerrou o conto. E foi assim também que ele começou.
Esse brincar é o aspecto manifesto de um sentido latente extraordinariamente amplo, sobretudo, quando se leva em conta a importância do jogo na infância e na criatividade. Falam disso psicólogos, psicanalistas, educadores, filósofos, escritores, Freud, Jean Château, Johan Huizinga, Raduan Nassar. Mesmo quando utilizam a terceira pessoa, os escritores não enganam os teóricos da literatura, nem em particular os intérpretes de ficções (auto)biográficas. Por trás dos jogos de máscara de um ele ou de um tu, acontecem muitas ações em primeira pessoa, cujo sujeito é, para alguns críticos, o desejo do autor, para outros a intencionalidade autoral. Pode ser provavelmente apenas a primeira opção, pois o autor é mil. Não há sincronicamente intenção mil.
A questão da atribuição fica ainda muito debatida entre especialistas, entre outros, Philippe Gasparini (2004)7). Sem negar a camuflagem de um Eu autoral que adorava desmascarar e explicitar no tempo de velho Stendhal, por suas ostensíveis “intrusões na narrativa”, optamos hoje em dia por privilegiar a noção de autor implícito e, de sua contrapartida, o leitor implícito8).
Assim como alegado, a chamada “intencionalidade” é uma noção de índole demasiadamente racionalizante e aprisionadora para se adequar a uma obra de imaginação, embora o imaginário esteja provido de uma lógica própria; mas esta convive com uma grande variedade de registros. Gasparini (2004, 9), chama tais registros de “estratégias da ambiguidade” / stratégies de l´ambiguité. É disto, aliás, que queria dar conta em parte a professora Eneida Maria de Sousa9) em seu estudo “Madame Bovary somos nós”, inspirado de René Girard. Para René Girard e Eneide Souza, tanto o autor quanto o leitor implícitos beneficiam à surdina das experiências da personagem protagonista de Flaubert. Pelo pouco que sabemos da biografia de Nassar, é mais do que plausível a sua cumplicidade secreta, não apenas com a partida de casa da menina para aventura, mas com certos desacatos e desafios maiores aos representantes da autoridade (O grande Outro de Lacan), desacatos estes esparsos na narrativa toda. Por isso é que a nossa leitura se efetuará em um duplo registro: o registro simbólico de uma “fábula da identidade”, via um ritual de identificação sexual em formação, o registro com ela entrelaçado de uma fábula política, em conformidade com uma convergência hermenêutica Freud/Lacan e Gilbert Durand.
Em virtude das estratégias desvendadas por Gasparini, somos autorizados a avançar que o primeiro sonhador de Menina a caminho é o próprio Raduan Nassar. Um Nassar que valendo-se da modalidade factiva do fazer ser e do fazer fazer põe a sua protagonista em posição de sonhadora. Mas, fazendo sonhar, o autor também sonha até certo ponto. Traduzimos essa relação da autoria com suas criaturas pela analogia de Cristo e de Maria do evangelista São Lucas: o criador franqueia à uma criatura sua, a glória de concebê-lo, e o resultado é que o criador está na sua criação. Além do mais, um intelectual como Nassar é sempre um observador atento da realidade política do seu país e do seu tempo, é legítimo supor que ele não se ausente totalmente de perspectivas narrativas e de papéis que veiculam sonhos de liberdade política e de outros direitos de forma implícita ou metafórica.
Relembramos que, para René Girard e Eneide Souza (In: BARTUCCI. Giovanna 2001, 140), não apenas o autor, mas também o leitor implícito é portador em surdina de um leque de investimentos ficcionais que os intérpretes podem recolher nos interstícios do texto, nos seus não ditos e na combinação de signos aparentemente esparsos, próximos e afastados. Pelo pouco que sabemos da biografia de Nassar, é mais do que plausível a sua cumplicidade secreta com a perspectiva narrativa da menina, personagem a caminho, ou seja, sempre à procura de algo em falta no presente de existência na cidade-nação. Esta menina é autora e pela indeterminação do seu nome não-próprio, investe o papel semiótico de actante observadora, que quase permanente muda, a fim de melhor captar o que se diz e o que se passa, no sentido de proporcionar a chegada na psique daquilo que está em falta, no sentindo de inverter o diurno em noturno. Pois um povo sob ditadura vive na noite e no pesadelo acordado (e não no sonho acordado de Freud). Nesta ótica, o onírico é irônico nos textos de Nassar, onde certos personagens sonham tanto.
Vamos trazer à reflexão do leitor, nos parágrafos a seguir, alguns discursos, situações e gestos, acontecimentos, umas contestações da autoridade, ou de certas práticas sociais aptas a desinibir uma menina de 12 anos em busca de liberdade e de auto-afirmação, face ao grande Outro. Esse “Outro”, que para Lacan pode ser Pai, Mãe, Estado ou, para Louis Althusser10) (2008), todo representante do Poder, a começar pelo Estado e suas Instituições, por extensão as Igrejas, as Grandes Indústrias e os Donos de capitais. Por isso que temos anunciado uma leitura associando o político e o imaginário. Mas a palavra imaginário reveste aqui o duplo sentido de Ilusão, de engodo inconsciente da racionalidade (Freud/Lacan) e de dinâmica de uma faculdade criadora e re-criadora de Mitos (Durand/Bachelard/Eliade). Pretendemos lançar uma ponte entre esses significados em uma sorte de “convergência hermenêutica”.
Convém lembrar um pouco do já dito, dado a importância desta fábula política ao lado da fábula da identidade: Menina a caminho, enquanto alegoria do poder, evoca a época do Estado Novo11): quem reclamava apanhava, assim como os membros de sua família. Entendemos melhor agora por que a menina, assim como a sua mãe, apanharam física e moralmente: a menina, na entrega da súplica no Armazém, foi atingida pela violência verbal de Seu Américo-Getúlio, que ameaçou estuprá-la até machucar ao máximo, ameaça esta que, na comoção psíquica da menina, tem efeito de realidade física. Os respectivos planos imaginário, político e psicanalítico convergem na expressão literária de um estupro do povo pelo poder. Outra correspondência singular: a fúria de Seu Américo (o homem a quem não se fala) repercutiu-se na casa “familiar” para onde a menina correu. A mãe também apanha do marido. Mulher de extrato popular, apanha verbal e fisicamente. E copiosamente como o povão de todos os séculos. Reparamos logo o conteúdo da mensagem de volta da suplica: é mais castigo! Nisto a história social se repete a partir de um caso ficcional particular. Que outra mensagem de volta poderia ter sido após Stalin, na União Soviética, Pol Pot, na Ásia, e em todos os lugares onde a bela doutrina elaborada por Lenine e Trotsky se instalou? Constatamos em quase todos os lugares como recado ao povo que acreditava na justiça revolucionária a mesma violência simbólica sobre o corpo dos fracos: o marido da mãe da menina, Zeca Cigano, confirma a fiel recondução desta violência que vem do alto, como os soldados e policiais morando nas barracas e vivendo das migalhas que caem da mesa dos donos do poder, e cumprem zelosamente as “altas” ordens ao estripar às baionetas, com requintes de torturas aos excluídos. Zeca Cigano cumpre ideologicamente um segundo papel, para além da transmissão da natural violência do Estado, teorizada por Thomas Hobbes (In PIOTTE, 2005, 169-184), seu instinto machista à David Hume (PIOTTE, 2005, 259-271) redobra a servidão do poder, ao administrar uma surra memorável a frágil mulher do povo, que ousou desafiar a sua supremacia. O autoritarismo do baixo duplica especularmente o autoritarismo do alto. Pois em ambos os pólos, o bulldozer da violência se encarniça em torturar os corpos para extrair não se sabe que justificativa da sua presença “obs-cena” no mundo.
Retomamos mais uma vez a pista da menina na cidade. A menina saiu de casa com o intuito de descobrir o mistério do seu corpo e daquilo que ela é, suportando, sem voltar atrás, um ritual de provas, sete vezes à beira do insustentável. Principalmente o ritual final. Tão grande foi a angústia da jovem que é oportuno se perguntar se ela saiu-se confirmada no objeto (nunca claramente formulado) da sua procura, ou seja: a sua provável identidade como pessoa ou como mulher. O caos induzido nela por Seu Américo, se não tinha causado um despertar, necessitaria de uma nova avaliação, de uma nova saída de casa para empreender decisivas experiências probatórias. Mas, antes dessa imaginária ação onírica, a melhor coisa a se fazer no intervalo, do hipotético ponto de vista autoral, é voltar a brincar.
Todavia, não é proibido ao leitor hodierno, libertado dos teólogos da teoria crítica das décadas de 60, imaginar por conta própria. Terminada essa primeira odisséia da heroína, o leitor tem direito de inventar outra, um “suplemento” (na acepção de Jacques Derrida). Retomamos esta palavra no sentido de uma tarefa complementar inseparável do ato de leitura, a de um prolongamento da instância autoral realizando a narrativa.
1. Produção e Leitura: Nome, Sonho, Resiliência
Depois dessas reflexões sumárias sobre a leitura, que voltarão em leit-motiv mais adiante, passamos a uma ordem de considerações teóricas que servem de motivação e de motor à leitura e à produção de texto anexas e complementares. Apontaremos o sentido e o sonho, porque eles nos situam na continuidade das primeiras contribuições apresentadas nesta investigação. Na busca de sentido que é a força motriz da dinâmica interpretativa, é preciso lembrar que será sempre, na medida do possível, acionada a Tradição mítica, à margem da racionalidade e do princípio de causalidade. Pois, como escreveu Paul Ricoeur (1988/1960, 170. O texto original é de 1960, utilizamos a reedição de 1988), “por trás da especulação, encontramos os mitos”12). Por seu lado, Freud13) nos diz que o sentido está no carro-chefe do inconsciente, portanto no sonho, e que mesmo dentro do sonho a verdade não está nas imagens óbvias, na manifestação falaciosa, mas na camada latente dos signos, no âmbito dos possíveis. Foi atribuído, com certa plausibilidade, a Rainer Maria Rilke, de ter sido no seu poema “Requiem” o primeiro a dizer que “somos feitos da matéria de nossos sonhos ”. Outros pensam que é Shakespeare. Seja quem fosse, admitimos que o sonho está presente em tudo que fazemos, mas antes na criação artística e na sua recepção. Assim como o vaivém desvairado da energia psíquica que movimenta a heroína de Nassar, o texto-sonho não tem ponto determinado que seria um fim ou um começo. Ele tem várias entradas e várias saídas. Fazemos a hipótese de que, para melhor seguir o fio narrativo em meio a tal desordem onírica do imaginário, necessitamos de um fio de Ariadne.
Pessoalmente, desde o início temos dado a entender que lançaremos mão da noção de resiliência. Grosso modo, a resiliência concerne a uma lógica de percurso narrativo que leva em conta paulatinamente todas as dificuldades internas e externas do personagem, na relação consigo mesmo e na relação com outrem, dificuldades essas resultantes de um trauma inicial ou ocorrido em um dado momento de sua existência e que lhe cabe superar por uma energia própria. A resiliência pode fracassar. Mas, bem sucedida, a vitória ou o sucesso do personagem sé tamanha e faz dele uma figura de proa em sua comunidade ou na sua carreira. Lá, onde predominavam a carência, a inércia, a introversão do depressivo, a fraqueza, a pusilanimidade, reinam doravante a iniciativa, a solidariedade, a abertura ao outrem, um dinamismo irradiante. Essa transformação, essa mudança de identidade, leva por vezes outros atores ficcionais a inventar um novo nome para o personagem resiliente. Examinar ulteriormente mais de perto essa questão. Pelo momento preciso preencher certos vazios que temos deixados na leitura anterior.
2. Menina a caminho na tradição do maravilhoso e do mito
A pensar na sucessiva provação da heroína pré-adolescente e implicação onírica do brincar inicial e final, a narrativa Menina a caminho revela pertencer à família das narrativas que se convém chamar impropriamente “romance de formação”, cabe-nos explorar essa hipótese por algumas considerações de ordem histórica e comparativa. Começamos pela relação ao imaginário dos contos maravilhosos, deixando para um parágrafo ulterior a tarefa propriamente comparativa. Mas, de modo algum pretendemos separar indevida e rigorosamente os dois assuntos.
Antes da experiência contada pelo sonho que suponhamos estar na concepção de Menina a caminho, deve ter havido outros acontecimentos que, segundo a análise estrutural da narrativa de Roland Barthes, não foram relatadas em razão da concisão (proclamada por Stendhal em suas intrusões autorais) ou do tropo do silêncio que, assim como vimos, é uma das virtudes a escrita de Nassar. Todavia, aquilo que o autor não narra, o intérprete pode imaginá-lo e restituí-lo. Para balizar a nossa imaginação, começaremos por apoiar-nos em fatos do texto: a saída sem sapato e toda desarrumada da menina. O que sociologicamente poderia ter sido colocada na conta de uma falta de cuidado da mãe. Mas nossa leitura prefere apontar para o ato falho de uma Cinderela que perdeu seu sapato num sonho maravilhosamente rico de toda gata borralheira como a heroína de Charles Perrault. Talvez a menina a caminho, de Nassar já tenha anteriormente perdido outra oportunidade de auto-realização. Desta vez, pela ocasião do sonho que lhe vem, precipita-se para não novamente fracassar no cenário de experiência ofertado. Ela entra de corpo inteiro nesta aventura.
Em nosso acompanhamento anterior da heroína, notamos sem espaço suficiente aqui para nada aprofundar que os cenários sucessivamente investidos por ela (episódio de Zuza-Dona Ismênia, namoro de cachorros na praça pública, paradas na barbearia, no Bar, diante da escola da professora Eudóxia, no Armazém, etc.) obedecem todos a um ritual assaz flexível. O leitor, portanto, não vai encontrar aqui todos os passos, tais como bem codificados nos contos de fadas clássicos. Não se denotam fielmente os rituais da saída de casa, da passagem pela floresta, da ida ao palácio de um príncipe para participar de uma festa, nem houve sumiço de moça encantadora, nem reencontro e casamento final. Não enfrentamos bruxa maléfica, nem constatamos presença de fada madrinha. Ora, debaixo de máscaras diversas, não faltam quase todos esses ingredientes. Há por aí equivalentes remotos, arrimados ao mito da procura de uma identidade que em nossos tempos modernos fica sempre em devir. Como temos detectado, as duas grandes narrativas (Lavoura arcaica, Um copo de cólera) mais expertas da confecção de seus cenários políticos, perseguem as mesmas finalidades iniciadas por Menina a caminho. O ficcionista providenciará buscas identitárias da mesma veia até resolver demitir-se dessa corrida da escritur-ação.
Na função mítica de Hermes, de mensageira, o autor inscreve o percurso da menina no ritual comum dos romances de formação, mas ao se outorgar certas transgressões, como se tivesse rejeitado inconscientemente o tipo de sociedade que a promovia a memória cultural dos contos de fadas anterior a 1789. O andamento da sua heroína se efetua ao sabor do acaso, por presença estranha até mesmo indecente em lugares habitualmente frequentados por vagabundos ou machos sem vergonha. E lá, na medida do possível, ela arruma um cantinho discreto de onde pode surpreender sem as mentiras de mamãe e de papai a comédia humana. Matreirice instintual de menina pobre que se promete descobrir os segredos da vida que os adultos escondem. Sabemos que ela experimentou momentos nem sempre desejáveis, que saiu de várias etapas rituais desconcertada e perplexa, tão alto pareça ser o preço a pagar no caminho da inserção sexual e social de uma menina pobre. Reavaliando mais um pouco e de outra forma as fases e cenas que temos apresentadas anteriormente, talvez consigamos ressaltar a ambivalência duma experiência bi-face, que mistura o positivo e o negativo.
3. As duas faces do ritual: o maravilhoso, a descida aos infernos
Revendo o ritual em que a menina se encontra envolvida, percebemos que ele não escapa à “aliança paradoxal do mito” (DURAND 1971, 5) subjacente na faceta dos ritos de passagem (VAN GENNEP 1978). Esta aliança, estudada pelo comparatista Pierre Brunel (1974, cap. II), adota entre outras a estrutura “morte e ressurreição”, exemplificada na Poética pela figura de Orfeu e no cristianismo pela figura do Cristo. Essa associação mítica é também sugerida pelos dois títulos de Arthur Rimbaud: “Uma estação no inferno” e “As iluminações”. Quando não fortemente marcada pela tendência de um percurso resiliente, a lógica ritualística de Menina a caminho acusa também tal alternância de estados eufóricos e disfóricos. Na Modernidade de ontem e de hoje, parece haver uma falsificação do modelo. Difícil saber se a sanção final da história é vitória (logo euforia), como na Semântica estrutural de Greimas, ou fracasso (logo, disforia) como no desfecho privilegiado na modernidade. No entanto, na etapa mais recente da Modernidade, Raduan Nassar ocupa uma posição muito original que consiste numa indeterminação e indefinição problematizante no final da história narrativa. É algo que aponta em sua reflexão sobre a estética e a política contemporânea o filósofo Jacques Rancière (2009, 157-175). Nassar mereceria, portanto, o título de um escritor realmente contemporâneo no sentido de sempre atual de Giorgio Agamben (2008, 39-41). O que, relativamente a esse traço, demonstrarão as afinidades de Menina a caminho com Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault na tecla comparativa. Essas afinidades não pararam apenas no desfecho dessas duas histórias, mas abarcarão também os momentos felizes e infelizes, assim como a importância destes no ritual da identidade sexual da heroína francesa e da heroína brasileira. Verificaremos tudo isso em breve, mediante uma rápida aproximação comparativa, uma vez acertada e terminada primeiramente a relação que estamos tentando estabelecer entre Menina a caminho e o maravilhoso ao passar pelos contos de fadas.
A hipótese inicial a propósito do romance de formação tem de ser retomada aqui. Se Menina a caminho se enquadra nesta família narrativa, nela deve se manifestar o necessário elemento dos contos de fadas que povoam essa família, a saber: o maravilhoso, como já foi dito anteriormente, no ponto de partida da travessia do espaço urbano pela mocinha está, aparentemente e do ponto de vista das suas emoções, uma dominante lúdica e prazerosa, quer se tratando do efeito de um sonho aliado ao brincar, quer se tratando logo após do seu primeiro encontro com três meninos quase as únicas pessoas da sua idade nesta cidade. Os meninos se chamam Dinho, Quinzinho e um terceiro que preparam uma festinha por um tempo ensolarado. É um que qualificamos de Fase A, no qual a menina não esconde o seu entusiasmo neste ambiente um tanto onírico, que a chegada intrusiva de Zuza faz cair do céu para a terra. Somando uns e outros momentos aparentados ao maravilhoso, teremos sucessivamente: uma Fase B, em que domina a atmosfera de diversão alegre alimentada por fofocas sobre seu Américo, uma Fase C, de bufonaria na Barbearia, feita de provocação jocosa, uma Fase D, o espaço-tempo de um verdadeiro teatrinho escandido pelo palavrão “filho da puta” clamada pelos homens, até aparecer de repente a monstruosidade do gesto hiperconstrangedor de “um sujeito que parecia um fantasma (...) de uma voz forte de meter medo...” (MC, 1994, 25), uma sorte de relembrança da indecência subida encenada por Zuza; Mas antes de fugir de lá, num relâmpago, a menina captou na parede da Barbearia, “c´uma ponta de estranheza ” as mechas de cabelos no chão, uma loira pelada na parede”, e também “o retrato de Getúlio Vargas ” (MC, 24,25). O que prova mais uma vez a ambivalência dos momentos de aprendizado oscilando sem solução de continuidade entre o arrebatamento infantil confundido com o maravilhoso e o tratamento de choques da feiúra ou do mistério do mundo.
Mais um momento maravilhoso, a Fase E, espera a heroína em provação. Foi do lado de fora da Escola da velha professora Eudóxia. Ali, “a menina se encanta com uma gravura colorida” (MC, 31, 32). Ela identificou neste retrato “um sapateiro examinando a sola estragada de um sapato em sua mesa de trabalho, enquanto um menino pobre e descalço ” (como ela) “espera ao lado ”. Reparamos que ela soube ler com deleite o artefato plástico, enquanto forma artística independentemente do conteúdo realista, e que somente em um segundo tempo e, depois da primeira impressão de beleza, passou a entender o sentido social que a leva à compaixão para os órfãos (como ela) apartados das benesses deste país. Então, exclamou-se: “Que pena! Pela cara do sapateiro o sapato não tem mesmo conserto. Que história será que cada um vai contar? ” (MC, 32). Numa leitura psicocrítica, assistimos a uma sorte de “mise-em-abyme” da narrativa inteira. Essa reflexão sugere por seu conteúdo latente o inacabamento da obra de arte, que é esta gravura e também a ausência ou indeterminação de desfecho do próprio empreendimento narrativo de Nassar. Voltaremos a tocar nisto na conclusão deste trabalho.
Pulando a cena que seria a Fase F, fortemente conotada sexualmente, que aconteceu no balcão de vidro da sorveteria do bar e que foi um momento de arrebatamento ambivalente para a menina - o texto nos diz que ela “arregalava os olhos... que lambe os lábios de vontade ”(MC, 36) - chegamos à pequena oficina de Tio-Nilo, na Fase G.
A Fase G é a fase mais bonita da história e o espaço narrativo costurado com as mais autênticas peças do maravilhoso. A menina vive ali momentos incomparáveis de fascínio e de desimpedimento. Circula numa sorte de feira de brinquedos, na qual se realiza parcialmente o que deveria ter acontecido na festa circense dos meninos da Fase I, Cena1 que ela perdeu. Tio-Nilo, homem bondoso, parece a conhecer. Por uma inclinação da cabeça, ele lhe autoriza a livre circulação por entre um acervo que, para uma pobre menina do campo, seria o equivalente de Disneyland contemplada pela primeira vez. Ela pode tocar em bonecas e brinquedos que falam, que gesticulam. Voltando ela própria a ser a criança de outrora, ela fala com eles, imita os seus gritos. Porém, ficou um pouco frustrada quando um “o pássaro preto que ela procurava no poleiro ” não estava (indicação de que ela já tinha vindo aqui). Onde será? “Coisa estranha”, o passarinho estava “todo encolhidinho justamente no pau seco do macaco sem-vergonha ” (MC, 46-47). Como na experiência do balcão da sorveteria, presencia o leitor uma mistura de regressão à uma fase mais infantil e simultaneamente emerge um progresso na dominação das emoções perante o mistério da realidade sexual: pois a menina, não se escandaliza em demasia e, como diante da gravura “do sapateiro e do menino pobre”, ela se mostrou sensível primeiramente à beleza plástica. E em vez de fugir do bicho sem vergonha, ela se compraz em registrar que o macaco “guarda, apesar de empalhado, a desenvoltura elegante de um movimento ousado (...). Olhos espertos, o rabo cumprido acabando quase em caracol...” (MC, 47). Continuando na nota eufórica e estética “a menina depois se perde admirando selas, arreios, e bainhas, trabalhos lindos enfeitados com franjas e metais ” (MC, 47). O justo e merecido apreço do labor do artesão será recompensado. Mais adiante, ela reparou que “desviando-se da tarefa”, Tio-Nilo, cujo ar austero impõe respeito aos rudes peões-boiadeiros, “franze a testa, esboçando um sorriso franco (pra ela)”. Memorável momento de alegria: “ela nem acredita, seu coraçãozinho dança! Cheia de leveza ”, ela inicia um jogo de equilibrista “como uma bailarina” (MC, 50), e volta em seguida a circular por entre outros brinquedos, em particular perante “um pinguço sentado na sarjeta, cheio de remendos, um brinquedo de feltro maltratado, rindo no ritmo do mundo: há-há-há!, hu-hu-hu!, !hi-hi-hi!. A menina passa por ele e na sua boca, ecoa há-há-há, hu-hu-hu!, hi-hi-hi! ” (MC, 50).
Foi, portanto, uma mini “Mirabilândia”, essa selaria de Tio-Nilo. Mas, saindo dali a protagonista logo se defronta tristemente com a dor do mundo, na pessoa do velho Seu Giovanni que, em sua loucura, fala sozinho e sempre procura um filho já morto, portanto, impossível de ser encontrado: “Dov´è il bambino? ” (MC, 51). Esta pergunta irrespondível sanciona o fim da euforia da oficina maravilhosa. Mais uma vez não há subida mítica e celestial que não se associe com a descida a miserável prosa cotidiana.
Na fase H (MC, 52) se destaca o grande Armazém de seu Américo, onde penetra a protagonista e que temos apresentado a profunda ambivalência. Era um paraíso terrestre como descrito nas primeiras linhas da Bíblia, antes da desventura de Adão e Eva, espaço bivalente em que “a menina avança alguns passos entre cereais expostos (...) e não vê ninguém” (MC, 55). Já sabemos que a sua progressão vai ser maravilhosa: “Arregala os olhos quando descobre a barrica de manjucas secas”. A sensação imaginária de fome acusa a intensa incitação da pulsão: “(ela) sente a boca vazia e (se vê) perdida, ao vislumbrar um compartimento cheinho de torrões de açúcar redondo” (MC, 55). E o que ameaçava de se produzir produziu-se, no apagamento de todo reflexo ou defesa do Super-Eu; “afunda logo a mão na barrica em busca de manjubas, come muitas, sofregamente. Lambe o sal que lhe pica a pele ao redor da boca e estala a língua. Pega depois um torrão de açúcar redondo, em seguida outro, mais outro, os mais graúdos que repousam na superfície”. Está plenamente consumado o pecado da gula por parte de alguém como ela, que possui uma consciência religiosa (Há pouco tempo atrás, ela fazia o sinal da cruz). Ora, uma velha tradição popular quer que o ato de comer (desmedidamente ou não) seja assimilado ao ato de fazer sexo, ao menos a um rito preparatório do mesmo. Se admitimos momentaneamente essa crença, que a psicanálise abona, há de crer que a satisfação do desejo oral da menina oculta um desejo sexual que se ignora. Mais ainda, haveria de augurar pelo menos duas consequências: um castigo pela queda na vertigem da tentação; um encaminhamento em direção a um passo capital no ritual da identidade sexual. É possível intuir que este passo a cumprir pelo labirinto obscuro do local (tal como descrito pela narrativa), vai ser bem mais próximo do real do que nas experiências sociopolíticas que até agora ela viveu (perto da escola de Dona Eudoxia, acerca da qual omitimos elementos importantes, também acerca do Bar). Previamente a catástrofe final ocorrida no termo deste percurso, e de que temos dado conta, no Armazém se redobram signos de mau auguro. Sonho dentro do sonho, a narração aponta agravantes à falta anteriormente apontada. “A barriga estufa, a voracidade do começo desaparece” (MC, 55). Seria o fim do acoplamento terminado pela boca lambendo (...)? Não, É uma simples pausa. Pois, a menina volta a atacar. “Continua lambendo o torrão enorme que tem na mão ”. E vai indo, “explorando, atrapalhada...”, fazendo novas descobertas que emprestam semblante de santos: santo Antônio, o casamenteiro que preside a liturgia derradeira dos Contos de fadas, São Pedro, aquele representante oficial do Cristo, que ironicamente não está sendo cruzado aqui a caminho do paraíso, mas da queda no antro do Minotauro: “A menina se encanta, não hesita, vai até o fundo, contorna o balcão, mas os dedos afrouxam ” (MC, p. 57, 58). E acontece o que deveria acontecer por falta de cuidado – alguma vez, o maravilhoso não leva à êxtase: “o torrão na altura da boca, se desprende, cai e se espatifa no chão, espirrando sobre o sapato do... seu Américo” (MC, 57-58). Começa o apogeu da fábula política que, como vimos, é também sexual.
Na releitura de Menina a caminho que iniciamos agora, estimamos poder reduzir mais ainda do que fizemos o número de fases anteriormente indicadas. O objetivo é de tornar o ritual mais denso e mais rico em significação. Diversos eventos ficarão potencializados, mas não por isto eliminados da nossa memória de leitor: eles continuam a funcionar, enquanto harmônicos. Dos ritos de passagem tidos por fundamentais no cumprimento do ritual de identidade da menina, quatro pertencem ao aspecto maravilhoso, um número igual remete a terríveis provações sexuais por uma menina em idade pré-pubertária dos anos 60. Todavia, sendo a sexualidade uma dimensão incontornável do humano e da identidade, não há de espantar se está tematizada na quase totalidade dos contos de fadas ou em narrativas maravilhosas. Pelo menos indiretamente, esta conotação não pode ser negada, fosse mediante o simbolismo dos objetos técnicos ou Travessia E Resiliência Na Poética De Raduan Nassar 187 artesanais (casa, talheres, vestuário, cores, kit de beleza) ou dos objetos da natureza (fauna e floresta), acidentes aparentemente inocentes (ferida e sangue decorrente da ferida). Mas o sexual está diretamente envolvido nas ações e modalidades de relações tais como a procura do príncipe ou de uma princesa, o episódio da busca de um sapato exatamente para o pé de Cinderela. O desfecho da maioria dos contos não é a sequência do casamento? A clássica frase final não é: eles casaram-se e tiveram muitos filhos? Mas entre o desejo e a realidade ficcional se interpõem obstáculos a vencer: dentro de casa e fora de casa, como em Menina a caminho, ou durante viagens (as andanças na cidade, da heroína de Nassar).
É evidente para nós que Nassar, assim como todo bom escritor moderno, não re-escreve a Tradição sem inovação. A sua fábula política o prova. E também a sua fábula da identidade sexual de que a fábula política é o hipotexto. Pois é buscando essa identidade que a menina se esbarra na sua marginalização da escola e no desprezo de estudantes bem vestidas e de nariz empinado, que fogem do seu convívio, que presencia no bar e na barbearia adultos sem pudor que discutem política. Nenhuma narrativa de educação fora tão longe num emaranhado tão discreto quanto experto do político e do sexual. As tentativas mais ousadas registradas em Bruno Bettelheim (2011), e em Nelly Novaes Coelho14) (2006, 19-21) passam longe do êxito de Nassar, quer frisando em demasia a ideologia a despeito do imaginário, quer em alegorizando o maravilhoso. Falta certo equilíbrio que, aliás, Nassar reeditará em Lavoura arcaica. O lado fantasioso do ritual está intimamente ligado a um toque de hiper-realismo. Neste, residem às provas principais exigidas pelo saber prático da identidade sexual: atordoamento, profundo assombro causado na carne da protagonista por Outrem, pelo outro estranho. O maravilhoso inclui o primeiro contato entusiasmado com a rua, com os meninos de sua idade brincando e preparando uma festa. Em seguida, veio o encanto por entre os brinquedos da oficina de Tio-Nilo. Enfim, houve o aproveitamento do Jardim das delícias, no primeiro espaço do grandioso Armazém. Por sua vez, aparentemente os rituais propriamente ditos de provação sexual se limitam às duas cenas de descidas aos infernos: uma cena que omitimos, no qual um cavalo faz descer seu sexo enorme para fazer xixi quase acima da menina, que estava acocorada pertinho observando. Essa cena assustadora, que aconteceu pouco tempo depois da menina sair de casa, ao encontro final com Seu Américo, e ambos os fatos equivalem a um estupro. Todavia, essas duas cenas de alto teor trágico têm de ser anexadas a série de situações constrangedoras e dolorosas em que se inscreve o aspecto resiliente da aventura da heroína: 1) o desprezo da aluna de uniforme a caminho da escola 2) o coito público dos cachorros seguido do latir da cadela (por que ela e não o cachorro macho?) sob uma ducha de água quente, 3) a super-indecência do homem simulando uma sodomização na barbearia, 4) a rejeição assustadora sofrida por parte da velha-mestra da escola, 5) o desespero do Seu Giovanni enlouquecido pela perda do seu menino, 6) a comovente passagem da Morte no enterro de uma criança, pouco antes de chegar ao Armazém. Para sentir a força superior do negativo face à positividade do maravilhoso, convém lembrar o impacto traumático de todos esses elementos do ritual da identidade sobre a sensibilidade de uma menina de apenas 12 anos, atravessando uma cidade em um só dia longo, como uma estação infernal rimbaldiana15).
Portanto, o número igual ou quase de estágio encantador não corresponde necessariamente a uma dominante no universo psíquico desta “infante” em provação. Como no mito de Orfeu ou no mito sagrado do Cristo, a passagem pelo labirinto infernal ou por uma inominável “paixão” conduzida até a morte, precede a emergência à luz ou à ressurreição, acontece numa espécie de preview, antes de se corporificar cenicamente. Mas, no caso da menina, a vitória sobre a morte resta uma incógnita.
Ⅲ. Destino ficcional e resiliência
Sendo relativamente nova, a noção de resiliência merece de ser ampliada antes da ampliação da questão do nome anunciado acima. Para melhor entender essa noção, seria bom de pensar ao destino humano, na óptica da teologia negativa implícita em Freud-Lacan, em filósofos como Miguel de Unamuno. À essa questão, a teoria do imaginário de Gilbert Durand tentou talvez oferecer uma versão positiva naquilo que o Mestre de Grenoble chama de “regime noturno” (na modalidade sintética ou mística, em particular). Como se sabe, nascemos com deficiências, umas visíveis outras invisíveis, que atrapalham a nossa experiência humana em diversas frentes da esfera privada e pública. Por isso é que o psicanalista Otto Rank16) imaginou tardiamente a hipótese de um traumatismo do nascimento. Contudo, ele não está sozinho nesta parada, se lembrarmos que a maioria das religiões, em particular o cristianismo, já tem colocado na origem humana uma falta, porém redimível pela fé e as obras da fé, pela esperança e pelo amor. No mundo secularizado da Modernidade, diversos estudiosos da psique, notadamente Boris Cyrulnik e os que aderiram a sua teoria da resiliência17), acham que muitas das dificuldades de acertar na vida cotidiana se devem a uma fraqueza interna decorrente de uma ferida psíquica ocorrida na prístina infância. Inclinamos a acreditar na teoria da epigênese de Jean Piaget, segundo a qual aquele trauma (pois tal é o seu nome), pode igualmente nos surpreender a qualquer época ulterior e não apenas no estágio infantil. À esta referência de Piaget, comprovada em nossa Bibliografia pela Fundação dedicada ao seu nome, acrescentamos o testemunho de Bertrand (1990), sobretudo de Perron (2000, 63-7) citados ambos por Lighezzolo e De Tychey (2004, 57-58). Quando acontece um acidente material ou biológico redundando numa ferida psíquica, é preciso recorrer a um especialista que saiba como despertar e pôr em ação a centelha ou força espiritual e moral inata em qualquer um de nós, e que, provavelmente, brincava de bela adormecida. Assim pensam muitos dos teóricos da resiliência, principalmente os da escola americana dos anos 70. O programa a pôr em obra agora se resume em chacoalhar-se para ir à luta, vencer o demônio da depressão e do desespero, conquistar o seu lugar ao sol ou correr no caminho da fé. Como complemento ao embrião bibliográfico dada até agora, sugerimos a leitura da obra da pioneira Froma Walsh, Fortalecendo a resiliência familiar 18) e as referências que encerram o belo capítulo inicial do livro de Rubenilda Maria Rosinha Barbosa (2012, 13-35).
Ⅳ. Reflexões finais
Na ficção nassariana, os cenários do sonho ou do devaneio estão em estreita cumplicidade com certas frustrações que vem assediar o sonhador-personagem e que atendem a resolução de uma maneira ou outra. Para tal resolução ficcional, o conjunto de imagens se condensa cá e acolá em ritos de um ritual inventado, que impulsionam o avanço ou o escapulir-se da personagem por pontos de fuga. Quando se empreende uma ação corajosa e tenaz, apesar de esporádicas fraquezas que se notam em Menina a caminho, a vida fictícia como a vida real podem, mas nem sempre, alcançar a meta se fosse bem definida. Por que um bom ficcionista as definiriam sem aquela indeterminação esperada pela iniciativa de todo bom leitor? Falharia certamente à sua missão.
Os textos de Nassar demonstram com astúcia escassez de matéria, a fim de provocar a imaginação do seu leitor. Para servir de teste adequado a sua poética ou teoria de produção, a menina e seus herdeiros ontológicos precisariam de um destino mais amplo. O escritor de Pindorama cultiva, porém, o silêncio até abandonar a literatura para criar galinhas. Mas, não sem ter previamente passado a chama da revolta principiada pela pré-adolescente “Menina” a uma figura adolescente chamada André, em Lavoura arcaica que, por sua vez, repassou o seu espírito de luta contra o poder, pelas armas do sexo e outras armas, a figuras germinadas da moça e do rapaz de Um copo de cólera. É talvez a prova de que as narrativas esburacadas de Nassar preparam a intervenção de personagens por vir, entre os quais são os próprios leitores. Portanto, a resiliência intergeracional operando nesta obra envolve também os intérpretes no mesmo empreendimento revolucionário resiliente, rumo à libertação das forças vivas confiscadas.
Convidamos para terminar à reflexão seguinte. No mundo de simulacro que é o mundo da literatura, não importa que haja trauma ou não. Para que seja validada a tese de Boris Cyrulnik, pode-se invocar um autor como Stendhal encenando uma espetacular corrida ao reconhecimento social no romance O Vermelho e o Negro, ou ainda mostrando a paciente, sutil e sólida reconstrução de uma honra perdida como procede Victor Hugo, na trajetória do protagonista Jean Valjean em Les Misérables. O que de modo algum significa que a literatura ou a crítica literária tem por missão de ilustrar ideias ou conceitos oriundos da Psicanálise, da ética, da política ou da filosofia. Freud e Lacan tem demonstrado bastante que as cartas são dadas, não por ilustrar esses domínios de saber, mas para experimentar a vida, “fazer o inventário de nossas feridas e de nossos recursos” (WORMS 2012, 7) pela intermediação da criação literária, desde os Trágicos gregos até os autores contemporâneos como Marguerite Duras, James Joyce, sem esquecer, na definição de Agamben, outros contemporâneos como Dante e Shakespeare.
Acknowledgments
Este artigo recebeu apoio financeiro do Fundo de Pesquisa da Hankuk University of Foreign Studies (This article was supported by Hankuk University of Foreign Studies Research Fund).
Pesquisa realizada com o apoio bibliográfico e a revisão do professor Sébastien Joachim, que ministrou em 2013, na Pós-graduação de Letras da UEPB - PPGLI, o seminário “Ética e Literatura“.
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