Institute of Iberoamerican Studies
[ Article ]
이베로아메리카 - Vol. 23, No. 1, pp.79-111
ISSN: 1229-9111 (Print)
Print publication date 30 Jun 2021
Received 17 May 2021 Revised 16 Jun 2021 Accepted 24 Jun 2021
DOI: https://doi.org/10.19058/iberoamerica.2021.6.23.1.79

O Valor Documental dos Balangandãs: Uma Análise Simbólica e Formal

CarmoSura Souza*BorgesLuiz C.**
The Documental Value of Balangandans: A Symbolic and Formal Analysis

Resumo

O presente artigo tem por finalidade apresentar a potencialidade dos balangandãs como fonte documental para estudos interseccionais de gênero e escravidão, a partir da análise de aspectos formais e simbólicos dos objetos musealizados no Museu Histórico Nacional(MHN) e no Museu Carlos Costa Pinto(MCCP). Os balangandãs são um tipo de joias de crioula, confeccionado em ouro ou prata e utilizado no Brasil desde o século XVIII pelas negras de ganho-mulheres que trabalhavam, sobretudo, na comercialização de gêneros alimentícios nos grandes centros urbanos. Encontram-se descritos em fontes impressas e gravuras, e salvaguardados em algumas instituições museais. Observa-se, no estudo, os sentidos atribuídos ao objeto ao longo dos séculos: joia, amuleto, pecúlio, documento, lembrança de viagem e patrimônio. Como resultado, o artigo busca evidenciar os objetos como fonte histórica e documental, verificando similitudes entre as peças musealizadas no MHN e no MCCP, ressaltando ainda o poder documental das peças produzidas na atualidade.

Abstract

The purpose of this article is to present the potential of balangandãs as a documentary source for intersectional studies of gender and slavery, from the analysis of formal and symbolic aspects of the museum objects in the Museu Nacional Nacional (MHN) and Museu Carlos Costa Pinto (MCCP). Balangandãs are a type of creole jewelry, made in gold or silver and used in Brazil since the 18th century by black women - women who worked, especially in the commercialization of foodstuffs in large urban centers. They are described in printed sources and engravings, and preserved in some museum institutions. In the study, the meanings attributed to the object over the centuries are observed: jewelry, amulet, peculium, document, travel memory and heritage. As a result, the article seeks to highlight the objects as a historical and documentary source, verifying similarities between the pieces musealized at the MHN and at the MCCP, also emphasizing the documental power of the pieces produced today.

Keywords:

Document, Slavery, Balangandã, Musealization, Brazil

Documento, Escravidão, Balangandã, Musealização, Brasil

Ⅰ. Introdução

O termo balangandã designa uma tipologia de joias de crioulas de caráter híbrido por possuírem elementos da joalheria lusitana e africana, e denominadas de luso-brasileiras por serem produzidas no Brasil desde o século XVIII até a atualidade(Factum 2009; Cunha and Milz 2011). São denominadas joias de crioulas osadereços corporais - como colares, pulseiras, brincos e balangandãs - utilizados, nos séculos XVIII e XIX, por mulheres negras - escravas, libertas ou livres - com design próprio e confeccionadas principalmente em ouro e prata. Os balangandãs, por exemplo, se caracterizam por possuir tamanho e volume imódicos, pela forma triangular, denominada nave(com fecho tipo borboleta), da qual pendem diversos elementos(berloques), e pela utilização de uma corrente para ser presa à cintura das usuárias. Trata-se de uma joia-amuleto de tamanho e quantitativo de berloques variados, vinculada a aspectos da vida pessoal da dona do objeto, razão pela qual cada balangandã pode ser tipificado como um objeto único. O dicionário Houaiss define o balangandã como:

Balangandã - 1. Ornamento de metal em forma de figa, fruto, animal etc., preso a outros, forma uma penca usada pelas baianas em dias de festa; serve também como objeto decorativo, lembrança ou, se miniaturizada, joia ou bijuteria; berenguendém. No passado era usado especialmente na festa do Senhor do Bonfim, em Salvador, pendente do pescoço ou da cintura das afro-brasileiras, e constituía amuleto contra o mau-olhado ou outras forças adversas.
2. Derivação: por extensão do sentido, penduricalho de qualquer formato (Houaiss and Vilar 2001, 383).

Como se depreende da definição dicionarizada, denomina-se debalangandã apenas os berloques que compõem a penca de elementos decorativos que fazem parte do balangandã. Contudo, trata-se de uma definição metonímica, pois toma uma parte da joia(os berloques) como o seu todo(o balangandã). Por sua vez, os elementos que formam, juntamente com a nave, o balangandã, são intencionalmente associados, uma vez que são escolhidos pela usuária. A hipótese mais corrente para explicar o nome dado a essa joia de crioula considera que o termo balangandã é onomatopeico, imitando o som que a peça produzao ser balançada. Já se constatou, no entanto, que essa terminologia aparece, ao longo de séculos, com algumas diferenças.

Peixoto(1980), em uma obra voltada para apresentar a Bahia aos turistas, ao invés do termo balangandã dá maior destaque ao termo barangandã, uma variação fonética do falar popular, que, para o autor, se refere ao caráter íntimo da peça, posto no pescoço e às costasda usuária. Para ele, o termo barangandã não significa penca, mas concerne a todos os objetos que indicam a devoção da usuária, como colares, emblemas, rosários etc. O autor reserva o termo balangandã para a joia que a usuária traz à cintura, com alça fechada à chave. Conquanto Peixotobusque diferenciar os dois termos, as evidências linguísticas sobre rotacismo indicam que se trata apenas de modos de pronunciar o mesmo termo.

A partir de pesquisas em jornais do início do século XX, foi possível observar as diferentes grafias para o termo: barangandãs, barangandans, balangandans e balangandã. Optamos, neste texto, pela grafia balangandã por ser esta, nas últimas décadas, a mais utilizada em textos científicos e jornalísticos. Para os fins desse artigo e em consonância com a atual literatura referente ao objeto, denomina-se penca de balangandã à joia compostapela nave, berloques e correntes, passíveis de serem desmontados, ou seja, se aberta a nave, local a que se prendem os berloques, podendo ser vendidos ou até mesmo arrolados separadamente. Nos séculos XVIII e XIX, poderiam servendidos e inventariados em testamentos separadamente, conforme explícita Paiva(2001). Pinturas e gravuras dos séculos XVIII e XIX mostram o uso de pencas, presas à cintura por pedaço de tecido ou corrente.

A maior carga simbólica de um balangandã se encontra em seus berloques. Cada conjunto de objetos é único porque cada portadora monta seu balangandã de acordo como seus gostospessoais. Os berloques podem ser caracterizados em quatro tipologias segundo Paulo Machado(1973): devocionais, votivos, propiciatórios, evocativos. Os devocionais referem-se a uma devoção, como uma imagem em miniatura de Nossa Senhora, ou uma pombinha, que representa o Espírito Santo. Os votivos testemunham agradecimento por graças alcançadas e, tal como os ex-votos, são, em geral, representações das partes do corpo curadas. Os propiciatórios vinculam-se à capacidade de atrair fortuna, sorte, amor ou fertilidade, por exemplo. Os evocativos funcionam como mementos que evocam um acontecimento marcante na vida.

As joias de crioulas apresentam diferentes tamanhos e ornatos, possuindo como característica principal o exagero, seja pelo volume da joia, seja pelo uso de muitos adereços ao mesmo tempo. Para Cunha e Milz, as joias “podiam ser luxuosas ou de confecção simples, desde que fossem volumosas e brilhantes, não importando a liga metálica, geralmente com baixo teor de ouro e as partes ocas”(Cunha and Milz 2011, 71). Muito diferente da joalheria portuguesa do período, conforme atestam Silva(2005) e Factum(2009), a volumetria das pencas foi relacionado por Lody(2001, 43), ao reforço da “ideia de riqueza e poder dos senhores coloniais”. Sem desconsiderar a hipótese de Lody, julgamos, contudo, que a diferenciação reside, sobretudo, no efeito distintivo e místico que tais joias produzem e/ou evocam.

Importa ressaltar que o colecionismo e a musealização tiveram grande importância na agregação de valor ao balangandã, no processo de consagração desse objeto como um bem cultural. Com o advento da modernidade e da constituição dos estados-nação, os museus foram concebidos como espaços destinados a guardar os tesouros da nação, desenvolvendo atividades de documentação, conservação e comunicação. Dessa maneira, as instituições museais foram instituídas como espaços que, além de produzirem conhecimento científico, tinham também a função de instruir e entreter a sociedade, sendo a musealização uma seleção e que, sobretudo, opera, segundo Bourdieu(2011) como instância de consagração.

A partir dessas considerações, objetivamosapresentar o aspecto documental dos balangandãs, evidenciando um pouco da história do uso desses objetos e identificando similaridades entre as peças musealizadas no Museu Histórico Nacional e Museu Carlos Costa Pinto. Em seu percurso histórico e sociocultural, o balangandã transformou-se, de objeto de uso privado, em um dos símbolos da cultura miscigenada no Brasil, na década de 1930 e, posteriormente, a partir da década de 1950, foi incorporado a uma “ideia de Bahia” ou a uma concebida imagem de “baianidade”, através de ações do Estadoque buscaram evidenciar seu caráter documental de patrimônio relativo à Diáspora Africana1). A valorização do balangandã perpassa três momentos significativos: 1) como joia-amuleto utilizado pelas negras escravas, livres ou libertas nos séculos XVIII e XIX; 2) como objeto- documento colecionado e, posteriormente, musealizado pelo Museu Histórico Nacional (MHN), Museu Carlos Costa Pinto (MCCP) e Museu Imperial (MI); 3) como bem culturalelevado pela intelectualidade da Bahia e pela indústria cultural à categoria de patrimônio representativo do misticismo da Diáspora Africana e de uma ideia de Bahia ou baianidade.

Vale ressaltar que a valorização dos balangandãs como objeto-documento e como bem cultural iniciou-se a partir da década de 1930 quando, em uma mudança ideológica no governo federal, iniciou-se uma valorização de bens culturais que remetiam a diversos grupos étnicos africanos como uma das matrizes formadorasdo povo brasileiro. Trata-se de um movimento que está aliado à consolidação do Brasil como nação. O objeto tornou-se, a partir de diversas instâncias de consagração(rádio, cinema, teatro, jornais, revistas e museus), um símbolo do país - em conjunto com os mais famosos samba, carnaval e capoeira - alcançando o ápice na década de 1950. Além da representação na esfera nacional, a década de 1930 também marca o início da valorização da peça no estado da Bahia - local a que se atribui a origem e maior uso da peça - tornando-se um símbolo da diáspora africana local com a produção, até os dias atuais, de réplicas para serem comercializadas, sobretudo para turistas.


Ⅱ. Balangandã: a joia-amuleto das negras do Brasil escravocrata

Com origem atribuída ao povo Banto - originário de regiões que, modernamente, compreendem Angola e Congo -, mas também aos Akan, Ashantis, Haussás e demais povos nagôs da Costa do Ouro e Golfo do Benin(Lody 1988, 2001), o balangandã está presente em diversos registros iconográficos de Rugendas, Debret e Carlos Julião; além de em fotografias de Marc Ferrez. A origem da peça é desconhecida. Paulo Machado(1973) e Maria Farelli(1981) a relacionam aos negros Malês que tinham o domínio da fundição de metais, com associações ao orixá Ogum e sua insígnia, denominada ferramentas de Ogum(Lody 1988; Cunha 2011). As pencas de balangandã tornamreaisas descrições de viajantes e desenhos sobre os modos de vida da mulher negra nos séculos XVIII e XIX, nos quais vestuário e adornos eram minuciosamente descritos. As peças ainda permitem o estudo das técnicas dos ourives brasileiros nos séculos XVIII e XIX, pois na feitura do balangandã verificam-se, além de técnicas portuguesas, “técnicas moçárabes, como a filigrana de prata e ouro”(Lody 2001, 42), além de objetos de matriz africana, como dentes de animais encastoados e corais. Para Lody(2001, 48), as pencas “atestam as soluções adaptativas encontradas por mestres portugueses e mestres africanos que doavam-se mutuamente conceitos e soluções na feitura das peças”.

As joias de crioula eram utilizadas por mulheres negras escravas, libertas e livres, crioulas ou africanas, de diferentes nações africanas. Há registro do uso de joias por essas mulheres desde o século XVIII, a partir de relatos de viajantes, iconografias e estudos de testamentos e inventários. Fruto da preservação de costumes africanos e do sincretismo que se operou desdeas colônias portuguesas na África, e posteriormente no Brasil, as peças eram usadas por mulheres que trabalhavam no comércio de alimentos, denominadas “negras de ganho”, sendo as joias-amuletos proteção, adorno, distinção e acúmulo de pecúlio.

O ‘ganho’ das comidas - mingau, pirão de milho, carimã, inhame, uns com carne, outros doces e servidos para uma clientela de pardos, negros e brancos do populacho - sempre foi serviço de mulher; mulher que exibia nas suas roupas alguns distintivos próprios da sua condição de mercadora de alimentos. Assim, através dos registros iconográficos de alguns documentalistas, vêem-se, além dos diferentes tipos de turbantes, batas, saias, escarificações nos rostos, as posturas, as bancase os produtos da venda e ‘objetos mágicos’, uns de cunho propiciatório, outros invocativos e próprios das atividades desempenhadas nas ruas, buscando proteção, lucro material entre outras benesses. Estes objetos, invariavelmente dispostos na cintura por argolas individuais, tiras de couro entre outros materiais, formavam conjuntos intencionalmente organizados, recebendo leitura simbólica por cada peça, suas combinações, cores, texturas, quantidades, materiais e como tudo isto foi ritualmente sacralizado e finalmente usado nas ruas(Lody 1988, 22).

Cidades como Salvador e o Rio de Janeiro possuíam uma grande quantidade de negros de ganho nas ruas, com as mulheres exercendo, como relatado por Lody(1988), a função de vendedoras de alimentos. Mary Karasch(2000, 285) menciona que no Rio de Janeiro o comércio de comidas era atividades de “africanas e baianas”. Juliana Farias(2019) alude também à presença de negras africanas e baianas na Praça do Mercado no Rio de Janeiro, demonstrando que existia circulação de pessoas e mercadorias, conseguindo rastrear a comercialização, mas não a fabricação, de pencas de balangandãs na capital do Império no final do século XIX. A presença de negras baianas, ou crioulas baianas, no Rio de Janeiro é algo constante na historiografia da escravidão, sendo relacionada aos “fluxos e refluxos” de crioulos e africanos entre Rio de Janeiro e Bahia, sobretudo, de acordo com João José Reis(2003) e Juliana Farias(2019), por conta da Revolta dos Malês e a consequente migração.

As joias de crioula, e em especial os amuletos que compunham os balangandãs, faziam parte da indumentária das negras “ganhadeiras” no traje de beca, e no traje de crioula, conhecido também como traje de baiana. Tanto as vestimentas quanto as joias usadas pelas negras no Brasil possuíam influências africanas, portuguesas(sobretudo do traje de vendeira e dos cordões de contas) e árabes, demonstrando a dinâmica dos encontros culturais no mundo lusitano.

As mulheres negras entendiam que, para exercer atividades nas ruas, necessitavam de proteção, apelando, para isso, ao uso de amuletos. De acordo com Juliana Farias, no Rio de Janeiro, na Praça do Mercado, atual Praça XV, havia muitas negras comerciantes que possuíam “nítido apreço por joias de ouro e prata” e que utilizavam as joias como “métodos de poupança”(Farias 2019, 89). As mulheres negras em processo de busca da conquista da alforria, assim como as libertas, de acordo com relatos de Paiva(2001) e Farias(2015; 2019), possuíam diversos bens de distinção, arrolados em inventários e testamentos, desmistificando a ideiadifundida por alguns historiadores do período de que a totalidade das joias pertencia aos senhores que, para ostentarem sua opulência, ornavam suas escravas.

Eduardo Paiva(2001) revelou, a partir do estudo de fontes documentais de Minas Gerais do século XVIII, nas Comarcas de Rio das Velhas e Rio das Mortes, um testamento de uma mulher negra livre, chamada Bárbara de Oliveira, crioula, liberta, filha de negra da Costa da Mina, partes de um balangandã que faziam parte do seu espólio e que, consequentemente, não pertenciam a nenhum senhor. O estudo das pencas de balangandã associado ao estudo de testamentos de mulheres negras livres e libertas permite um enriquecimento dos estudos históricos de aspectos culturais e econômicos do período escravocrata relacionado à mulher negra, pois quem possui um testamento a ser cumprido possui pecúlio.

Paiva(2001) apresenta Bárbara, possuidora dos berloques como uma possível prostituta, e menciona, ainda, como possuidoras de joias outras libertas que eram comerciantes, ou em uma linguagem da época, uma mulher que vivia dos “ganhos” - principalmente da venda de comidas nas ruas das cidades. Karasch(2000), Paiva(2001) e Farias(2015; 2019) mostram, contudo, que a utilização do balangandã, mesmo que associado à presença de negras baianas, não era exclusivo de africanas e crioulas residentes na cidade de Salvador.

Com base no conjunto de dados sobre o balangandã, podemos afirmar que o primeiro valor atribuído às pencas de balangandã é de joia-amuleto, isso sem deixar de considerar que essa joia poderia ser utilizada como pecúlio em emergências, pois suas usuárias, conquanto estivessem proibidas, por lei, de possuírem bens imóveis por pessoas de cor, podiam investir em joias, como uma forma de uma poupança. Em princípio, o valor de joia estava vinculado à necessidade de adornar-se, fosse a mulher escrava ou livre, com intuito de demonstrar riqueza, seja do senhor, seja própria. Esse valor-de-ostentação e, portanto, de distinção, é explicito na documentação e na exposição das peças no MHN e no MCCP. O objeto, dessa forma, estava vinculadoà religiosidade, à memória, à rede de solidariedade e à emancipação financeira.

1. O balangandã como documento

A musealização teve um forte papel na agregação de valor documental aos balangandãs. Como já mencionado, o ato de musealizar, através das atividades de documentação, conservação e comunicação, consagra os objetos como testemunhas, eleitos como tais por sua representatividade e/ou cientificidade. Com referência às joias de crioulas musealizadas no Museu Histórico Nacional2) e colecionadas por Carlos Costa Pinto3), em especial os balangandãs, é necessário realizar uma reflexão sobre as motivações de sua musealização pois, de acordo com Lima(2013, 48), as coleções são “apropriações culturais de exemplares de origem cultural e natural, aos quais foram atribuídos também valores culturais de distinção” ou ainda de “diferença de identidades”. Problematizam-se os balangandãs como um objeto com grande força documental, através de seus aspectos formais, de uso e simbólicos. Os objetos musealizados possuem sentidos e valores múltiplos, relacionados à sociedade que os “produz, armazena, faz circular e consumir, recicla e descarta”(Meneses 1994, 27). Partindo do pressuposto de que os valores são atributos histórico-culturais que podem variar de acordo com a formação sociocultural dos sujeitos, conquanto não tenham força excludente uma vez que valores heterogêneos coexistem simultaneamente na mesma sociedade, Bárbara Appelbaum(2007) elenca, como tipos de valores, o artístico, estético, histórico, de uso, de pesquisa, educacional, antiguidade, novidade, sentimental, monetário, de associação, de comemoração, de raridade, dentre outros. O ato de reconhecer os balangandãs como um documento é, igualmente, uma atribuição de valor: o valor documental.

O balangandã é, enquanto joia, um signo, composto, por sua vez por um conjunto de signos(os berloques), formando uma mistura harmoniosa de elementos provenientes das culturas africanas e lusitanas, por meio do qual pode ser demonstrada as crenças das mulheres negras escravizadas no Brasil. Recorremos a Bourdieu ao pensar no valor/poder simbólico dos bens culturais e nas trocas simbólicas existentes na sociedade pois “os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social”, que possuem a característica de “serem instrumentos de conhecimento e de comunicação”(Bourdieu 1989, 10). Ainda de acordo com este autor, os “sistemas simbólicos distinguem-se fundamentalmente conforme sejam produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do grupo, ou pelo contrário, produzidos por um grupo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de produção e de circulação relativamente autônomo”, compreende o poder simbólico como aquele capaz “de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo, e desse modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo”(Bourdieu 2011, 12-14). Fundamentados em Bourdieu e pensando nos museus e na musealização, podemos considerar, portanto, que os museus possuem, exercem e transmitem poder simbólico. Diana Lima(2010), a partir do pensamento bourdiano, apresenta duas acepções do museu vinculado ao poder simbólico: a) deinstrumentos de conhecimento e de construção do mundo dos objetos e b) de instrumento de poder.

O entendimento dos signos, com base em Bourdieu, conduz aum conhecimento do poder simbólico do objeto. Para se compreender o balangandã, enquanto objeto relacionado à estrutura simbólica é necessário decifrar os signose, para que isso seja possível, é imprescindível conhecer, analisar a sociedade que os produziu, como fica claro na afirmativa acima de Meneses.

Quando um objeto é musealizado demonstra-se, através desta ação de consagração, o valor documental de tal objeto. Ele é um documento por ser testemunha de algo, alguém ou algum evento, sendo, por isso mesmo, um signo-índice. Durante muitos séculos, entendia-se por documento, sobretudo, fontes escritas e impressas, entretanto, a partir do final do século XIX, há um alargamento da noção de documento no sentido de valorizar qualquer marca da vida e da inteligência humana. Para Reis, com a modificação no campo das técnicas e dos métodos, agora

[...] os documentos se referem à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças coletivas, às suas diversas formas de organização social. Os documentos não são mais ofícios, cartas, atas, editais, textos explícitos sobre a intenção do sujeito, mas listas de preço, de salários, séries de certidões de batismo, óbito, casamento, nascimento, fontes notariais, contratos, testamentos, inventários. [...]. Os documentos são arqueológicos, pictográficos, iconográficos, fotográficos. cinematográficos, numéricos, orais, enfim, de todo tipo(Reis 1994, 126).

O início do século XX é frutífero para a compreensão dos objetos e edificações como documentos. Alois Riegl(2008) enquadra a arquitetura como monumento-documento, Paul Otlet(2018) dilata o manancial de documentos para além dos bibliográficos e a Escola dos Annales amplia para os objetos tridimensionais o escopo das fontes historiográficas(Burke, 2010). Lucien Febvre, um dos fundadores dos Annales, sobre documentos esclarece que:

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que pertence ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem(Febvre 1985, 249).

A noção de documento foi intensamente abalada pela ampliação das fontes historiográficas e avanços na Ciência da Informação. Contudo, apesar da existência dos museus há alguns séculos, os objetos musealizados não eram, até então, referenciados de forma veemente como uma fonte para a escrita da história. Ulpiano T. B. de Meneses(1994, 12) salienta a importância dos museus como espaço de grande potencial de produção de conhecimento, afirmando que “tem condições de análise e entendimento que nenhuma outra plataforma em nossa sociedade iguala”, devido ao poder simbólico de muitos de seus objetos musealizados. Neste sentido, a discussão sobre a definição de documento perpassa os objetos musealizados, pois o ato de musealizar também realça o valor documental ou de representação que um determinado objeto tem para a sociedade.

Compreende-se a musealização, de acordo com Lima, como a institucionalização ou “um processo institucionalizado de apropriação cultural” que “imprime caráter específico de valorização a elementos de origem natural e cultural” que pode ser executada “indistintamente no local no qual está situada a coisa - musealização in situ - quanto realizando a sua transferência para outro espaço - musealização ex-situ”(Lima 2013, 51-52). De forma semelhante, para André Desvallées e François Mairesse (2013, 57), o processo de musealização tem seu início na separação do objeto “de seu contexto de origem para serem estudados como documentos representativos da realidade que eles constituíam”.

A mudança de contexto de um objeto e sua entrada no museu o torna uma evidência cultural, ou um documento, passível de diversas leituras. De acordo com Desvallés e Mairesse(2013, 57), o objeto seja de origem animal, vegetal, de culto, utilitário ou de deleite, quando passa pelo processo de seleção e entra no museu, torna-se “evidência material ou imaterial do homem e do seu meio, e uma fonte de estudo e de exibição, adquirindo, assim, uma realidade cultural específica” transmitindo “um testemunho autêntico sobre a realidade”. Para os referidos autores “um objeto separado do contexto do qual foi retirado não é nada além de um substituto dessa realidade que ele deve testemunhar”, sendo a musealização produtora da musealidade “valor documental da realidade”, mas, segundo esses mesmos autores, não constitui “a realidade ela mesma”(Desvallés and Mairesse 2013, 57-58).

Para Meneses(1994, 12), o museu apresenta os objetos “em suas múltiplas significações e funções”. Ainda para Meneses, o museu possui uma função documental “que garante não só a democratização da experiência e do conhecimento humanos e da fruição diferencial de bens”, como também “a possibilidade de fazer com que a mudança - atributo capital de toda realidade humana - deixe de ser um salto do escuro para o vazio e passe a ser inteligível”(Meneses 1994, 12). A característica da potencialidade do objeto de ser portador de informação, a partir da leitura dos signos, faz do museu locus privilegiado do desenvolvimento de pesquisas científicasque têm como objetivo o estudo de objetos musealizados, os quais, além dessa potencialidade cognitiva tambémpossuem a função de emocionar, entreter e instruir. A partir do alargamento da noção de documento, pode-se atribuir às pencas de balangandãs e a outras fontes históricas musealizadas o valor documental, uma vez que são testemunhas documentadas de eventos históricos.

Para Meneses(1994, 21), todo “documento é um suporte de informação”, existindo uma categoria específica de objetos denominados “documentos de nascença”, pois foram “projetados para registrar informação”. Contudo, o autor salienta que “qualquer objeto pode funcionar como documento e mesmo o documento de nascença pode fornecer informações jamais previstas em sua programação(Meneses 1994, 21). Os balangandãs, dessa forma, são documentosque, a partir da capacidade de leitura do observador, podem evidenciar diferentes aspectos das relações sociais existentes no Brasil escravocrata.

Os balangandãs têm um grande potencial documental para a compreensão da mulher negra no período em que vigia da formação social escravista, pois permitem depreender aspectos culturais e econômicos de suas portadoras e da própria sociedade como um todo, com estudos que podem analisar desde aspectos formais e físicos dos objetos(como a composição da liga metálica), até aspectos intangíveisdos objetos como seus significados e momentos de usos do adorno. Objeto indicativo de poder, símbolo de riqueza e distinção social, os balangandãs eram utilizados por mulheres como distinção e amuleto(libertas e livres) ou para a demonstração de poder do senhor(escravas).

Na atualidade, é possível observar um grande quantitativo de balangandãs sendo comercializados no Centro Histórico de Salvador e Mercado Modelo, configurando a quarta etapa de atribuição de valor. As pencas de balangandãs passaram a ser um dos símbolos da construção da “ideia de Bahia” ou de baianidade, histórica e (re)construída, que perpassa a utilização das peças como um dos símbolos que caracterizam o povo baiano, juntamente com o candomblé, a capoeira, a crioula baiana, a culinária, as festas populares, dentre outros.

Os balangandãs, na Bahia, remetem ao misticismo e à beleza das negras baianas, numa ação que remonta à valorização de uma Bahia que, hoje, é apenas fantásmica - uma cidade de grande projeção econômica e política, graças, em geral, à grande movimentação comercial, propiciada pela produção de açúcar e o fumo, em que mulheres negras vendiam os mais variados serviços nas ruas. Nesta perspectiva, os balangandãs remetem a uma valorização saudosista da Bahia de outrora. Consideramos, pois, queos balangandãs atuais funcionam como dêiticos que representamos tempos áureos de riqueza da Bahia, em que crioulas possuíam joias, devendo também ser lidos como documentos, pois indicam como uma população perpetua símbolos para finalidades diversas.

2. Comparativo entre os balangandãs do MHNE do MCCP

O Museu Histórico Nacional(MHN) foi fundado em 1922 e teve Gustavo Barroso como seu primeiro diretor. Possui um acervo de cerca de 22 mil itens de objetos tridimensionais de diversas tipologias para representar a história do Brasil. A instituição possui três balangandãs que fazem parte de um pequeno conjunto de joias de crioulas. O estudo comparativo com as peças do Museu Carlos Costa Pinto(MCCP) foi realizado com dois balangandãs, por serem vinculados à coleção Miguel Calmon, oriundas da Bahia e nitidamente do século XIX - como as peças do MCCP.

Os balangandãs que compõem a coleção do MCCP foram adquiridos por Carlos Costa Pinto, no início do século XX, na cidade de Salvador. Carlos Aguiar Costa Pinto foi um próspero comerciante que colecionava obras de arteadquiridas, sobretudo, em Salvador. No início do século XX, a Bahia vivia uma estagnação econômica, denominada de enigma baiano(Aguiar 1958), situação que motivou a venda, para colecionadores, de diversos objetos pelas famílias vinculadas à aristocracia rural baiana. Tanto os balangandãs do MHN enquanto os do MCCP foram adquiridosneste período de crise econômica na Bahia.

Fundado em 1969, o MCCP possui uma grande coleção de joias de crioulas formada por bracelete, pulseiras-copo, corrente, brincos e balangandãs. Os balangandãs da instituição formam a maior coleção museológica do objeto, contando com um total de 27 pencas de balangandãs, sendo 26 em prata e 1 em ouro. As peças da instituição foram adquiridas através de compra, entre as décadas de 1920 e 1940, sendo todas oriundas da Bahia, quando o colecionador também adquiriu outras peças que compõem a coleção fechada da instituição.

Das três pencas de balangandãs do acervo do MHN, duas encontram-se em exposição. As peças escolhidas para comparação entre o MHN e MCCP foram produzidas provavelmente no século XIX, razão pela qual o terceiro balangandã do MHN foi descartado neste estudo, pois é uma peça do século XX, e na sua ficha não constam informações sobre sua origem.

Inicialmente, foram analisadas duas fichas dos dois balangandãs do MHN, pertencentes à coleção Miguel Calmon, denominadas, respectivamente, de ficha de entrada e ficha cadastral. A ficha de entrada possui 16 campos e a ficha cadastral 15 contendo informações que se repetem e com vários campos ainda em aberto. O último preenchimento das fichas foi realizado em 1986, caracterizando uma ausência de alimentação de informações sobre os objetos na ficha.

O primeiro balangandã musealizado pelo MHN possui o número de registro 003.626. Há informações desencontradas nas fichas da peça: o ano de entrada é apresentado como sendo 1936, mas, em outro documento, a entrada é datada de 1953. Como há mais de um documento indicando que a peça deu entrada em 1936(inclusive na ficha de entrada), é possível deduzir que 1953 é o ano de preenchimento da primeira ficha cadastral. A peça foi adquirida através de compra. Confeccionada em metal(nave e berloques) e madeira(um berloque), a peça mede 15 cm de comprimento por 8,6 de largura. A nave é decorada com dois pássaros(pombas) de perfil, fecho tipo borboleta e com 12 berloques pendurados em sua parte denticulada: uma chave, duas figas, um cilindro de pau de Angola, um carneiro, um pandeiro, um coco de água, um boi, dois dentes de animais, uma faca e uma esfera decorada com flores. A peça possui, ainda, corrente. Em uma das figas foi possível visualizar a marca de contraste A.S., que pode ser comparada com outros balangandãs musealizados, a fim de descobrir se a sigla está relacionada a um ourives ou à usuária da peça. Entre as marcas de contraste4) encontradas nos balangandãs da coleção do MCCP, observa-se também a marcação A.S. em uma figa, podendo-se, portanto, deduzir ser a marca de um ourives. Vale ressaltar que as marcas de contraste podem ser observadas em berloques ou no fecho tipo borboleta da nave.

O segundo balangandã musealizado no MHN, que possui o número de registro 003.675, e que também está vinculado à coleção Miguel Calmon, foi fruto de uma doação realizada por Alice da P. Calmon Du Pin Almeida. A peça, confeccionada em prata e latão, mediante um trabalho de fundição e cinzelamento, mede 12,5 de comprimento por 19.5 de largura. Possui nave semelhante à anterior, com duas pombas nas extremidades, e com a parte central encimada com uma folha trilobada. A peça também possui 12 berloques: um galo, um coco de água, um violão, uma romã em prata com elementos fitomorfos, um cacho de uva, uma noz de madeira enfeitada e encastoada em prata, um pandeiro, uma cruz em latão, uma alça de balangandã em formato de coração, com os pingentes presos - argola, berla de fio, âncora, revólver, pombinha, peixe e boneco -, duas figas, um relicário em forma oval, cujas faces contêm, respectivamente, a imagem de um coração e de nossa senhora coroada.

De acordo com a categorização de Carvalho(1973), foi possível encontrar nos balangandãs do MHN e do MCCP berloques de motivos devocionais, propiciatórios, votivos e evocativos. Foram aplicados aos balangandãs do MHN os significados atribuídosàs peças por Machado(1973), Lody(1988; 2001), Silva(2005) e Factum(2009) aplicados aos balangandãs do MCCP. Foram listados os elementos e seus quantitativos. A figa (4) foi o elemento mais encontrado nos balangandãs do MHN. Trata-se de umamuleto propiciatório, de proteção contra o mau-olhado e contra enfermidades. Os dentes de animais (2) são amuletos evocativos da força e qualidade do animal. O pandeiro (2) pode ser relacionado ao culto caboclo. O cacho de uvas (1) está vinculado à fertilidade, fartura à mesa e ao sangue de Cristo. O coco d’água (2) não possui atribuição mágica, mas função decorativa, representando um objeto muito usado no XIX para beber água. A chave (1) tem a possibilidade de ser de cofre ou sacrário (devido ao tamanho), havendo, ainda, a possibilidade de representar São Pedro. O cilindro (1), amuleto protetor ligado à propriedade da madeira, e, quando oco, poderia conter algum tipo de pó mágico em seu interior. A romã (1) é símbolo de fecundidade e fartura. A cruz (1) está vinculada ao cristianismo. O galo (1) está relacionado à vigilância. O boi (1) liga-se ao culto a Santo Isidoro, Omolu Moço ou ao culto ao boi do povo Banto. O relicário (1) é um amuleto devocional por possuir imagem de Nossa Senhora coroada e o coração de Maria. O carneiro (1) simboliza oxalá no candomblé e São João Batista no catolicismo. O violão (1) é símbolo de São Gonçalo protetor das prostitutas, representação da boemia. A faca ou facão (1) tem vinculação com Ogum. A noz (1) em madeira remete à proteção vinculada à madeira. A bola confeitada (1) possivelmente tem cunho decorativo. A pombinha (1) está relacionada ao Divino Espírito Santo. O revólver (1) é símbolo de proteção de carga sociológica ou do cotidiano. O peixe (1) simboliza fartura e abundância. O boneco (1) é, provavelmente, um ex-voto. A âncora (1) é um símbolo vinculado ao candomblé e representa segurança e solidez.

A título de comparação, e para observar os elementos que se repetem entre os berloques dos balangandãs do MHN e do MCCP, listamos todos os berloques e quantidade de cada elemento encontrado no MCCP, a partir dos estudos de Lody (1988) e Silva (2005): abacaxi (2), ágata (1), âncora (3), ânfora (4), apito (1), babaçu (4), balde ou panela (1), barril (1), bico de ave (1), boi (1), bola (3), bola de louça (1), boneco (1), burro (3), busto de índia (1), búzio (1), cabaça (4), cabeça de cavalo (1), cacau (2), cachimbo (2), cacho de uvas (28), cachorro (13), cágado (6), caju (9), caneca (2), cântaro (2), caramujo (2), casa (2), cavaleiro (1), cavalo (3), chave (43), chave antropomórfica em figa (2), chifre de besouro (1), cilindro (55), coco d’água (49), colher (2), concha (1), conta (14), crucificado (1), cruz (2), cruz palmito (4), cuia (2), dente (7), dente de jacaré (2), dente de javali (11), dente de leão (1), dente de maracajá (2), dente de onça (1), dente de onça ou gato maracajá (3), dente de porco (16), espada (6), espora ou esporão de galo (6), estrela de cinco pontas (9), ex-voto (61), facão (4), figa (53), figura feminina (1), flor (2), fruta estilizada (4), fruteira (1), fruto (4), galo (8), garrafa (6), globo armilar (1), guizo (1), haste de madeira (1), jarro (8), lanterna marítima (1), laranja (1), machado (6), meia-lua (4), meia lua em arco (2), meia lua em um círculo (2), moeda (80), moringa (2), olhos de Santa Luzia (5), ovelha (10), ovo (4), palmatória (1), pandeiro (14), papagaio (1), papagaio com poleiro e fruto (1), pássaro sobre galho (2), peça estilizada (1), peça incompleta (1), pé de boi (1), pedaço de crustáceo (1), peixe (29), pera (3), pera ou fruta estilizada (1), pião (1), pimenta (1), pinça de crustáceo (1), pingente (2), pingente de ágata (1), pipo - fornilho de cachimbo (1), pomba (2), pomba de asas fechadas (2), pomba do Divino Espírito Santo (11), porco (2), porrão (1), quarta (1), relicário (10), relicário ou incensador (3), revólver (1), romã (36), santa (3), sino (1), sol (2), sol em um círculo (1), tambor (7), unha de tatu (1), valência (3), vinaigrette (1), violão (1).

Verifica-sequehá similaridade entre os berloques, ou elementos pendentes das peças, dos balangandãs encontrados no MHN e no MCCP, visto que, com exceção da noz em madeira encastoada em prata, foram encontrados elementos decorativos comuns nas peças dos acervos de ambos os museus. Assim como os balangandãs do MCCP, as peças analisadas do MHN também traduzem o sincretismo religioso das usuárias, com referências à religião católica, ao catolicismo popular e às religiões de matriz africana nas peças, como por exemplo, o carneiro, a pombinha e a cruz relacionados ao cristianismo; e o boi, a faca, o cilindro e o pandeiro vinculados às religiões de matriz africana.

Na comparação entre os balangandãs do MHN e do MCCP é possível observar que, referente às medidas, a maior nave de balangandã do MCCP mede 19 cm comprimento por 14 cm de largura(peça nº 2265 – XII - 73ª) e a do menor balangandã mede 8,5 por 7,5(peça nº 2252 - XII - 60ª). As medidas se assemelham às das peças do MHN, conforme pode ser observado nas descrições acima. Quanto ao tipo da nave, a predominância no MCCP é de nave simples, variando os elementos decorativos: pombas com asas abertas, denominada alada ou espalmada com palmeta trilobada; pombas de perfil, em repouso; papagaios de perfil; ramagens em curvas e contracurvas; figuras antropomorfas perfiladas e afrontadas, com cinco cabeças de anjos querubins e apenascom elementos fitomorfos(florais). Não há discrepância entre os elementos decorativos da nave dos balangandãs do MHN e as tipologias de nave encontradas no MCCP. Verifica-se que, no que tange à quantidade de berloques por balangandã, há diferença entres as peças do MHN e as do MCCP. As peças do MHN possuem 12 berloques por balangandã, ao passo que nas do MCCP essa quantidade varia de 22 até 55 elementos.

A não existência de outras peças iguais(duplicatas) atribui maior valor patrimonial às peças, tornando-as mais valiosas. A principal distinção formal é a ausência de duplicatas nas peças musealizadas no MHN e MCCP, pois sua característica principal é a diferenciação entre as pencas de balangandãs.

É possível perceber na expografia do MHN e do MCCP os recursos utilizados para apresentar odesign da peça, bem como sua forma de uso, tais como gravuras, fotografias, esculturas etc. A documentação museológica e os recursos expositivos do MHN e do MCCP apresentam os patuás, joias de crioulas e balangandãs como sendo, em geral, de uso cotidiano, mas também destacam o seu uso em momentos e trajes especiais, como, por exemplo, no traje de beca e no traje de crioula(Silva 2005; Lody 2003). Observando as gravuras de Debret e de Carlos Julião, por exemplo, é possível perceber o uso cotidiano de tais amuletos, visto a necessidade das negras de ganho de se protegerem no trabalho nas ruas, e na vontade de conseguir um bom pecúlio. Em que pese a importância do trabalho de Eduardo Paiva, que descobriu a menção a elementos de um balangandã em um testamento de negra livre, ainda são necessários mais estudos, com cruzamento de dados de fontes testamentais do período da escravidão e as joias de crioulas, a fim de melhor revelar o percurso desses objetos. Assim, oconsórciometodológico e analítico entre a Museologia e a História pode enriquecer a historiografia da escravidão brasileira com estudos que considerem os balangandãs um documento histórico, além de realçar seu valor simbólico e patrimonial.


Ⅲ. Considerações finais

Conforme disposto nos objetivos, buscou-se evidenciar o poder documental e simbólico dos balangandãs precursores. Todavia, algumas dificuldades foram encontradas. A primeira delas concerne à escassez de informações históricas acerca desse tipo de joia. Analisando, por exemplo, a documentação das peças musealizadas pelo MHN, observa-se que muito pouco se sabe sobre a origem das mesmas. As informações, quando disponíveis, estão incompletas. Na Bahia, a tradição oral divulga que as pencas pertenciam aos senhores que “ajaezavam as suas escravas como forma de demonstrar poder e riqueza”; mas, também, que algumas negras e crioulas eram donas das joias, as quais, segundo histórias, “conquistavam, em troca de favores sexuais, os adornos que muitas vezes eram vendidos para as alforrias das próprias ou para as caixas de alforrias, fundos comuns para a libertação de escravos”(Lody 2001, 50). Na atualidade, nas ruas de Salvador, costuma-se propagar aos turistas que os balangandãs estão apenas associados a favores sexuais. Contudo, a historiografia, a partir do estudo de testamentos de negras livres e libertas, crioulas ou africanas, tem demonstrado que tais mulheres acumularam pecúlio e utilizaram diversos objetos de luxo, dentre eles as joias de crioula, e, certamente, dada a sua abrangência, esse pecúlio não derivaria apenas de supostos favores sexuais.

Lody menciona que “basicamente na capital, Salvador, permaneceram em quantidade e expressão “as pencas”, uma vez que colecionadores afirmam que foi na área do Recôncavo que floresceu mais fortemente o uso das pencas de amuletos que em outras regiões do estado ou do país”(Lody 2001, 50). Talvez, por isso, a maior coleção museológica de balangandãs se encontra na Bahia e as pencas de balangandãs do MHN estejam, de acordo com as fichas, vinculadas à coleção Miguel Calmon, sendo as peças oriundas da Bahia. Como já mencionado, o balangandã não era exclusivo da Bahia. Segundo Laura Cunha e Thomas Milz(2011), na Rua Direita da cidade do Rio de Janeiro havia um grande comércio de berloques, adquiridos, sobretudo, pelas amas-de-leite que se protegiam e os colocavam também nas crianças que amamentavam. Tal informação, apresentada também por Juliana Farias(2012), demonstra que a utilização de amuletos como forma de proteção era bastante comum tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro. O balangandã era uma forma elegante de portar os amuletos, cujo uso podia ser feito de diversas formas e espalhados por várias partes do corpo.

A figa foi o berloque mais encontrado nas duas pencas de balangandãs do MHN, demonstrando uma relação próxima com os do MCCP. As figas eram o amuleto mais comum no período, e são utilizados até na atualidade. O pandeiro, o coco d’água e os dentes de animais que estão presentes em dois balangandãs do MHN também são recorrentes nas peças do MCCP.

Observou-se, também, que na documentação museológica, exposição ou guarda em reserva técnica do MHN, assim como no MCCP, não há uma separação dos elementos, a fim de não descaracterizar o aspecto único de uma penca de balangandã. No que tange ao trato do poder simbólico dessas peças, é preciso fazer uma análise do conjunto tal como se encontra montado. Ou seja, a fragmentação ou o desmonte de uma penca de balangandã, ou a guarda agrupada de seus berloques, após o desmonte do balangandã, descaracterizam a peça e dificultam a sua compreensão. É preciso observar que, na composição de um balangandã, os berloques não aparecem isolados. E é justamente essa unicidade que revela elementos da história de sua usuária, sejam de gosto pessoal, religiosos e até comerciais.

Conquanto não seja raro, o balangandã é um objeto único, por representar, em sua composição, os gostos pessoais de sua portadora e suas possibilidades socioeconômicas de adquirir tal bem(material de confecção, tamanho, número de berloques etc.), funcionando também como um índice de distinção social, isto é, como diacrítico.

Na atualidade, os balangandãs, de símbolo de distinção social, que conferia status social a sua usuária, tornou-se um símbolo evocativo, que revoca, de forma imaginária, as antigas crioulas da Bahia. As peças modernas, que são produzidas em série, se assemelham aos balangandãs precursores, mas não são cópias fidedignas - no aspecto formal, material ou no quantitativo de elementos - desses. O aspecto mais importante a destacar sobre os novos balangandãs é que, a despeito de sua função mercadológica em se realça o valor de troca em detrimento do valor de uso, eles também são fontes documentais, conquanto em um outro contexto histórico e sociocultural. Além disso, ao menos na Bahia, mantêm seu estatuto de patrimônio culturalda diáspora africana. É possível que, à medida em que avancem os estudos sobre essa joia de crioula, a comparação entre os balangandãs precursores e os atuais revelem, mais que suas diferenças, os elementos socioculturais significativos que ambos possuem, bem como o seu papel na configuração do patrimônio cultural brasileiro.

Notes
1) Entende-se por patrimônio relativo à diáspora africanaaquele formado nas Américas resultante da dispersão forçada de povos africanos que, em território americano e através de sincretismos, hibridismos e resistências, lograram perpetuar práticas culturais que trouxeram consigo.
2) A família Calmon tem vinculação com a Bahia, onde prosperou em diversos negócios, sendo proprietária de terras no Recôncavo e do extinto Banco Econômico, por exemplo. A família possuía forte influência na política, com alguns membros da família, incluindo Miguel Calmon, residindo na capital da República. A coleção doada por Alice Calmon recebeu o nome de Miguel Calmon (a indexação denomina-se Miguel Calmon e possui diversos objetos, entre eles, joias de crioulas. Os balangandãs do MHN são pertencentes à Coleção Miguel Calmon. Contudo, nas fichas, constam como sendo uma doação(registro) 003.675 e o outro compra (003.626) do MHN.
3) Carlos Aguiar Costa Pinto foi um próspero comerciante baiano que colecionou diversos objetos oriundos das famílias baianas que se desfizeram de seus objetos por motivos financeiros. Faleceu em 1946 e não deixou descendentes. Seguindo a vontade do marido, a viúva inaugura, em 1969, o Museu Carlos Costa Pinto.
4) Marca de contraste indica a composição de liga de ouro ou de prata na peça. Existiam, no período colônia, as marcas de ensaiador e de contraste. Contudo a maioria das peças não recebia nenhuma marca, para driblar o pagamento de tributos. As peças do MCCP possuem apenas marcas de ensaiador(testada) e não de contrastada(marcada), sendo: uma borboleta(fecho), cinco naves e cinco berloques(Silva, 2005). Apesar de ser denominada como contrastada, a marca da peça do MHN também indica ser de ensaiador. A diferença de ambas reside no registro junto a colônia.

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